Análise Tática: Por que seu quarterback tem que ter olhos de cigano oblíquo e dissimulado

“Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada.” Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim”. Essa é a descrição – impactante e histórica, talvez a passagem mais citada do autor – que Machado de Assis faz sobre Capitu em Dom Casmurro. Calma, não é uma análise literária que vai fazer você voltar para o cursinho pré-vestibular. É contexto.

Atletas de futebol americano não têm o rosto tão reconhecido como os de basquete. O campo é maior, o capacete praticamente esconde as feições de espanto e dor a cada jogada. Ao nível do do campo, porém, os olhos do quarterback revelam ao safety tanto quanto os olhos de Capitu revelavam para João Dias. O ideal é que a descrição oftalmológica do olhar da amada de Bentinho no romance valha também para o líder de seu time. Com a diferença que aqui é algo positivo.

Antes de mais nada, uma explicação tático-defensiva: na maior parte das jogadas, o free safety marca em zona, com o quadril recuando para trás e fitando o quarterback adversário. Embora não consigamos ver para onde o quarterback está olhando – isto é, salvo raras jogadas – o safety marcando em zona consegue fazê-lo. Não entrarei nos meandros específicos da marcação em zona e da marcação individual, haverá textos sobre isso nesta série. O que você precisa saber de antemão é que há times que preferem um safety no fundo (single high, como os Seahawks e os Falcons fazem bastante) e outros que preferem jogar com dois no fundo (Cowboys, por exemplo). Isso, claro, é situacional – não é sempre que cada um desses times joga dessa forma e há vários que operam de forma híbrida.

Ponto é que, na maior parte das jogadas defensivas, haverá pelo menos um cara lendo os olhos do quarterback. E é aí que a gente vê – ou percebe – a diferença dos medianos para os grandes. Se o quarterback conseguir ser dissimulado, olhar para um lado e depois para outro… Essa pode ser a diferença entre uma jogada falha e uma bem-sucedida.

Falando assim, parece fácil. Mas acredite: poucos conseguem fazer isso bem. Dissumular e enganar o safety adversário apenas com o olhar é algo que faz parte da chamada progressão de recebedores. Em resumo, cada jogada aérea tem um recebedor principal, um secundário, terciário e assim por diante. Há quarterbacks que conseguem fazer essa progressão e outros que não conseguem. No college, é bem difícil que haja mais do que 10 que efetivamente fazem progressão. Há muitos deles cujos técnicos pedem para que a progressão seja de “metade” do campo, inclusive.

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Não que os da NFL sejam, todos os 32 titulares, capazes de operar essa progressão com eficiência. A maior parte o faz em algumas jogadas e olhe lá. Não porque não querem, mas porque o tempo hábil é muito pouco. Para fazer a progressão, o quarterback tem que prever o que vai acontecer com a defesa, onde cada jogador de seu ataque estará e como vem a pressão para cima dele. Tudo isso em questão de segundos – vira algo quase que subconsciente. Em o sendo, logicamente aqueles mais experientes – ou os mais dedicados, no caso – conseguem prever o que vai acontecer porque treinaram mais e passaram a semana toda estudando a defesa adversária e procurando por deixas. Um safety com mão na coxa pode indicar que ele vai recuar em zona. Um linebacker que dá um passo em falso na contagem para o snap – snap count/cadência de snap – pode indicar blitz.

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E quando falamos em quarterbacks bem preparados, dificilmente vamos fugir da citação-Brady. A carreira do Darth Vader de Foxboro chega à maioridade em 2017: 18 temporadas na liga. Nenhum quarterback está há mais tempo na NFL – isto é, dentre os titulares. É difícil que haja algo que Brady não tenha visto ainda. Assim, essa experiência lhe compra segundos preciosos no pocket – os quais ele pode usar astutamente para ser dissumulado aos olhos do safety.

Os Falcons, como você pode ver ao início[note] Os Gifs são retirados do GamePass e sua câmera All 22. Todos os Direitos Reservados à NFL – Uso permitido como Fair Use/divulgação [/note] da jogada, estão jogando com marcação individual em todos os recebedores dos Patriots – fizeram-no ao longo de todo o primeiro tempo do Super Bowl LI, o que obviamente deixou a defesa cansada e ajudou a implosão que a unidade teve no segundo tempo. Ao fundo, apenas um safety marcando em zona (cover 1)  –free safety, Ricardo Allen, camisa 37.

Veja como Tom Brady começa a jogada olhando para a sua esquerda – esse é o início de sua progressão de recebedores. Na medida em que ele faz isso, Allen acompanha o olhar de Brady – oblíquo e dissimulado. Ele vai deslocando sua marcação em zona para a direita (esquerda de Brady). O quarterback dos Patriots, rapidamente, vira para a direita para seguir a progressão. Seria tarde demais para Allen, que já fora deslocado para a esquerda em sua marcação em zona.

Por outro ângulo da câmera All 22 conseguimos ver como o camisa 12 manipula a defesa de Atlanta com apenas um olhar. Veja como ele desloca o corpo e olha para a esquerda, atraindo a marcação em zona. E depois, vendo que Julian Edelman está desmarcado, solta uma bomba.

Esse, claro, é apenas um dos exemplos possíveis que podemos usar para um ato que é tão comum aos grandes – poderia ter escolhido jogadas de Aaron Rodgers com a mesma facilidade. Apenas escolhi essa sequência de jogadas porque estava de bobeira vendo a câmera All 22 desse jogo e esse passe me chamou a atenção – e porque a analogia com Don Casmurro seria boa demais para passar.

Há certas diferenças entre os grandes quarterbacks e os medianos. O passe numa terceira descida longa, quando a defesa está esperando-no, a capacidade de colocar a bola em lugares ridiculamente pequenos – e a progressão de recebedores também é uma dessas virtudes que os grandes compartilham.

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