A foto que ilustra este post é clássica. É o momento posterior de um tackle desferido por Chuck Bednarik, linebacker do Philadelphia Eagles, em Frank Gifford, running back do New York Giants. Gifford viveu 84 anos e aparentemente esse tackle não lhe fez mal mesmo ele tendo ficado hospitalizado por alguns dias. Aparentemente, até porque ele teve uma vida saudável por muitos anos, sendo presença marcante na cabine de transmissão do Monday Night Football em seus primórdios. Aparentemente. Após sua morte, foi diagnosticado que ele tinha CTE – Encefalopatia Traumática Crônica, doença degenerativa do cérebro.
“Você sabe por que as pessoas gostam de violência? Porque dá prazer. Humanos acham a violência profundamente satisfatória. Mas remova a satisfação, e o ato fica… vazio”. Esta é uma das muitas inteligentes citações do personagem de Alan Turing no filme O Jogo da Imitação. São três da manhã e eu acordei pensando nela e na questão da violência acerca do futebol americano e de outros esportes – em alguns até mais, como boxe e MMA. Por que, como humanos, gostamos tanto dessa violência? Por que gostamos de assistir séries como Game of Thrones, na qual a violência é uma constante a cada episódio?
A satisfação vem, indiretamente, da noção de vencer. Se você analisar biologicamente, a violência é o efeito de uma disputa entre dois ou mais indivíduos – e isso acontece tanto em alguns “momentos” da vida humana e mais frequentemente ainda, no mundo animal. Porque estes nada mais são do que “nós” sem a evolução e a racionalidade. Dois machos lutando para acasalar com uma fêmea ou dois indivíduos animais, do sexo que for, lutando por uma questão territorial. Mesmo que o chão não seja mais disputado, você compete em inúmeros momentos da vida com outros seres humanos. Por uma vaga no vestibular, por um posto mais alto no trabalho. Isso também é território.
De toda sorte, ainda há alguns instintos animais no cérebro humano. E não há nenhum esporte mais territorial do que o futebol e, de maneira decorrente, o futebol americano. Um campo de grama, que lembra o palco de inúmeras batalhas ao longo da história da humanidade; um goal (objetivo) de cada lado e para chegar nele você tem que passar, como na imagem acima, por 11 adversários que utilizarão de sua fiscalidade – seja a dividida no futebol ou o tackle, que nada mais é para “dividida” em inglês – para lhe impedir. E para lhe ajudar outros tantos bloqueando e se sacrificando por você.
“Esportes competitivos não tem nada a ver com jogo justo. São criados com ódio, inveja, amor próprio e um prazer sádico pela violência. Em outras palavras, é guerra sem tiros”. George Orwell, notório escritor inglês, disse essas palavras um dia sobre o esporte. Inglês e vivo na primeira metade do século passado, ele provavelmente não conhecia o futebol americano – fazia menção ao futebol, muito provavelmente. Suas palavras, tantos anos depois, não deixam de ser um pouco verdade. O esporte nada mais é do que uma manifestação “de mentirinha” da guerra. O futebol, em suas duas versões analisadas aqui, é o esporte mais popular do mundo. O da bola redonda em todos os países que não os Estados Unidos. O da bola oval, neste último. Não é coincidência. São as mais perfeitas materializações da guerra – porque de modo último são jogos cujo objetivo é a conquista de território.
Orwell, aliás, cria um mundo em seu mais lido romance, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, no qual o controle da sociedade é exercido de várias formas por aqueles que tem o poder. Uma delas, para evitar a a liberação de ódio contra o IngSoc é chamada de Dois Minutos de Ódio – e poderia perfeitamente ser um estádio de futebol após um pênalti mal marcado pelo árbitro. Imagens de um suposto traidor do Estado são exibidas diariamente para o povo – este, então, começa a xingar e derramar todo o ódio e violência que dentro de si foram reprimidas pela evolução. O protagonista, mesmo que a princípio não tenha a menor vontade de se engajar naquilo, acaba cedendo e derrama seu ódio junto da multidão. Saindo desse mundo distópico para nossa realidade, os esportes proporcionam esse tipo de alívio. Pela violência que costuma não ter maiores consequências fatais, liberamos nossa raiva instintiva e esta não acaba sendo descontada em outras situações que podem ser mais danosas ao nosso dia-a-dia.
Torcer, de certa forma, é enganar nosso cérebro a se engajar em atividades que ele foi originalmente programado a fazer. Não se engane: sob o aspecto biológico, nosso cérebro é bem parecido com aquele presente em ancestrais de 10 mil anos atrás. Você sente frio na barriga de conversar com uma menina numa festa exatamente pelos mesmos motivos que seu “eu” de 10 mil anos atrás sentiria: o medo da rejeição. No caso da festa, a rejeição não faz mais sentido – você não vive numa tribo de 10 pessoas na qual a rejeição de um potencial parceiro acarreta em não passar os genes adiante. O que ocorre é que a civilização foi, pouco a pouco, anulando e culturalmente moldando esses “botões” de violência – que, reprimidos, são acionados em dadas situações como nos esportes e nos dão prazer como recompensa quando torcemos pela violência alheia. O mesmo prazer que foram programados – mas anulados – a nos dar. Mas sem maiores consequências negativas – tal qual nos engajarmos numa luta que levaria ao óbito caso perdida.
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Em 2012, trabalhava ainda com o Direito num escritório de advocacia, como estagiário. Meu colega de sala é uma das pessoas mais serenas, cultas e inteligentes que conheci até hoje – incapaz de fazer mal a uma mosca. No bojo das provocações de Chael Sonnen a Anderson Silva, o instinto animal desse meu colega falava mais alto do que qualquer outra educação superior que ele tinha tido na vida. “Vai ser muito louco ver o Anderson arrebentar o Sonnen”, me dizia na época. Quatro anos atrás, não me fazia muito sentido. Hoje me faz.
“O potencial biológico da agressão existe no ser humano, mas esse potencial mudou bastante durante a evolução. principalmente desde que o homem saiu de seu ambiente natural e passou a construir seu habitat — a selva de pedra das cidades.” disse à Super o professor Frederico Graeff, do curso de biologia da Universidade de São Paulo (Ribeirão Preto). “De fato, há uma predisposição genética para a agressividade”, confirma o geneticista Oswaldo Frota-Pessoa, da Universidade de São Paulo, também à Super.
Um estudo indica que que as mesmas células do cérebro que estão envolvidas em outras recompensas do dia-a-dia também estão por trás da ânsia humana (e animal) pela violência. “Descobrimos que o caminho da recompensa no cérebro se torna engajado em resposta a um determinado evento agressivo e que a dopamina está envolvida”. A quem não está familiarizado, a dopamina é um neurotransmissor que atua no cérebro dando uma sensação de prazer ao satisfazer uma necessidade ou ao conseguir algo. “A violência serve como uma forma realmente útil na evolução, a de defender seu território; você defende seu parceiro; se você é fêmea, defende sua prole”, completa um dos pesquisadores.
E, como dito, não há esporte mais ligado a essa questão territorial do que o futebol em suas três mais populares formas – o futebol, o rugbi e o futebol americano. Se você quiser ir um pouco mais longe, o futebol australiano é extremamente popular na Austrália também. Como dito: não é por acaso. A questão territorial envolvida em todos eles desperta essa sensação de prazer a quem torce – porque seu cérebro leva a crer que você está envolvido. Que o adversário no campo é o inimigo. Mas, com a atuação da civilização e racionalidade através dos séculos, os futebois acabam sendo apenas uma grande metáfora para a guerra e nada mais.
Um outro estudo, que tenta explicar o porquê das pessoas serem tão atraídas pela violência, reflete justamente isso. “Encenações de atos agressivos tendem a serem vistos como importantes (…) há a admiração por atos de coragem e pela beleza moral em face da violência”, diz um dos pesquisadores. “Alguns tipos de retratos da violência tendem a atrair audiências porque eles prometem satisfazer motivações humanas através de insights de aspectos da condição humana”, conclui. Quando vemos J.J Watt sangrando e voltando a campo, de certa forma admiramos isso porque é o que nosso cérebro está originalmente programado a fazer.Um dos primeiros documentários acerca do esporte, muito antes do surgimento da NFL Films, tinha o sugestivo título de “O Violento Mundo de Sam Huff”. Este era o inside linebacker pioneiro, sem o qual a defesa 4-3 provavelmente não pegaria. “A violência na NFL é, era e sempre será um dos maiores atrativos para vender o jogo”, diz o grande Paul Zimmerman em seu The New Thinking Game Guide to Pro Football.
A prova disso reside no próprio vernáculo do esporte. Blitz nada mais é do que uma manobra militar nascida na Segunda Grande Guerra. Scramble era o ato dos pilotos irem rapidamente aos aviões em caso de bombardeio do aeródromo. Ataque, Defesa, pelotão, front, unidade e até mesmo rookie – que nada mais é do que diminutivo de recruit (recruta militar). Dave Meggyesy, linebacker dos Cardinals nos anos 1960 e um dos primeiros líderes no Sindicato de Jogadores da NFL, assim resumiu tudo: “O futebol americano nada mais é do que uma metáfora de guerra para algumas daquelas pessoas. Realmente coloca elas no limite. Os fãs conseguem colocar todas suas hostilidades para fora. Há caos mas não há mortes”. Bob Kuechenberg, guard dos Dolphins nos anos 70 e campeão invicto do Super Bowl, segue na mesma linha de raciocínio – ambos disseram a Zimmerman sobre o assunto, o qual faço apud aqui. “Somos os gladiadores; O que fazemos é um grande substituto para a guerra, um jogo de xadrez violento”. É coisa de gente burra? Não. É coisa de ser humano. John Urschel, guard dos Ravens que começou recentemente doutorado em matemática pelo MIT (Instituto Tecnológico de Massachussetts, indiscutivelmente uma das melhores instituições acadêmicas do mundo) disse uma vez algo que resume muito porque gostamos da fisicalidade dos esportes. “Não há nada como dominar o cara na sua frente”.
De maneira justa posta, a violência no futebol americano o coloca de maneira mais… Honesta do que os outros esportes. Uma citação literária cai bem aqui, novamente: “Homens viajam lado a lado por anos, cada qual trancado em seu próprio silêncio e não trocando palavras até que o perigo se aproxima. E aí eles se alinham ombro a ombro. Descobrem que pertencem à mesma família. Eles crescem e se desenvolvem em reconhecimento dos colegas. Olham para uns aos outros e sorriem”. Não, a citação não faz referência a nenhum livro de futebol americano. Ela está em Terra dos Homens, de Saint Exupery – o qual você deve provavelmente conhecer por outro livro, O Pequeno Príncipe.
4:38 da manhã. Por que eu escrevi todas essas palavras?
Um forte sentimento de conflito reside em minha alma nos últimos meses. Ele foi salientado na redação do Manual do Futebol Americano. Como posso, mesmo nunca tendo brigado na vida, mesmo sem nunca ter desferido um soco a nenhum rosto alheio… Como posso gostar de um esporte que muitos rotulam como sendo violento? Algumas coisas da vida não tem uma explicação lógica. Tentei dar algumas aqui – embasadas de pesquisas, argumentos de algumas autoridades científicas e etc. Mas ainda não estou satisfeito. Por quê?
Por que eu escrevi todas essas palavras mesmo?
“Conhecimento é poder”, reza a lenda ter dito Francis Bacon. Conhecer e saber que sim, esportes são violentos – seja o futebol com carrinhos, joelhos torcidos e cabeçadas na bola, seja o futebol americano com tackles, seja o baseball com slides na segunda base – em maior ou menor medida. Saber que eles são uma alegoria de, no final das contas, uma batalha, fez com que eu entendesse o porquê de nós, como humanos – em condição inequívoca, genética, instintiva – gostamos tanto de ver atletas em campo. Porque eles são o que nós sempre queríamos ter sido.
Daí a importância do esporte. É um jogo violento. É uma grande alegoria das guerras – mas sem o ônus das mortes. O esporte ensina a trabalhar em equipe, ensina que o sucesso só vem antes do trabalho no dicionário. Ensina a vencer. O ser humano desenvolveu uma necessidade de conviver em grupos para se manter – e o futebol americano é isso, a epítome do trabalho em equipe. Não adianta o guard fazer um bom trabalho se o cornerback não está motivado. De uma forma ou de outra, vencer é uma virtude. Você não estaria lendo este texto se seus ancestrais não tivessem vencido na corrida da reprodução. E para mim, aquele que mais ensina a importância de vencer é o futebol americano. Não precisamos ir longe para entender. É só compilar algumas frases de Vince Lombardi, lendário treinador do esporte que dá nome, postumamente, ao troféu: “O preço do sucesso é trabalho duro, dedicação ao trabalho lhe dado e determinação ao saber que. perdendo ou ganhando, aplicamos o melhor de nós mesmos àquele trabalho”.
Por que eu gosto de esporte? Não sei. Deixo a conclusão em aberto. Uma que gostei muito foi me dada pelo Jean Souza, redator do ProFootball. “Eu compartilho do mesmo gosto pelo esporte: a estratégia, a tática e o clima de guerra. É instintivo, primitivo e prazeroso, fazer o que. Meio contraditório, mas é a realidade”. É a nossa essência. Não há muito como lutar contra isso.
Primeira Leitura, excepcionalmente nesta semana, foca-se apenas neste ensaio. Na semana que vem voltamos com a coluna em sua estrutura normal. Você pode mandar seu feedback para meu twitter em @CurtiAntony ou via email para curti@profootball.com.br








