Primeira Leitura: Minas Bowl, Gigante Bowl – O futebol americano deu certo no Brasil

Primeira Leitura está diferente mais uma vez hoje. Poderíamos falar sobre o impasse de Von Miller com os Broncos ou sobre o corte de Eugene Monroe nos Ravens. Isso pode ficar para terça feira. Como você percebeu, a coluna saiu um pouco mais tarde do que o normal nesta semana.

Mas foi por um bom motivo. Hoje é um dia histórico para o futebol americano no Brasil. Sem demagogia nem nada do gênero. É a mais pura verdade. Há 10 anos eu jamais imaginaria que haveria equipes plenamente equipadas – com capacete e pads – aqui no Brasil. Hoje há praticamente uma centena. Mesmo com o dólar alto, todas elas se comprometem a um amor que há algum tempo atrás era nicho do nicho.

Sou de uma época – e não falo isso com orgulho e querendo me achar, era uma merda – na qual você tinha dois jogos por semana da NFL na TV. Os jogos da tarde, até 2006, não eram transmitidos. Você acompanhava mesmo duas ou no máximo três partidas de seu time – e quando o Super Bowl era da FOX nos Estados Unidos, só Deus sabia se o jogo passaria na FOX brasileira, no FX (como aconteceu no XXXIX) ou mesmo no SporTV, dado que a ESPN não tinha os direitos todo ano. Era um inferno.

Não era todo mundo que tinha internet o tempo todo em casa e smartphone não existia nem em sonhos. Para saber se meu time havia ganho a partida da tarde, eu tinha que esperar até a manhã seguinte para ver o SportsCenter americano. E esperar até que a bottomline resolvesse passar os resultados da NFL. Perdeu? Ganhou? Era tudo o que dava para saber, uma vez que só o resultado aparecia, nada mais.

Sou de uma época na qual eu seria zoado se o São Paulo perdesse a Libertadores para o Inter, mas se meu time na NFL perdesse… Bem, ninguém ligava ou se importava em zoar. Time de fantasy? Isso era coisa de maluco, nem Cartola FC existia para o Campeonato Brasileiro. Imagine convencer alguém que dava para montar seu time e pontuar de acordo com o que os jogadores fizessem na vida real. Achar oito amigos no colégio para montar uma liga era mais do que surreal.

Praticamente não havia sites em português e programas na tv a cabo além dos jogos. Praticamente não havia ninguém para conversar sobre o esporte. Este, aliás, foi um dos motivos pelo qual eu resolvi montar um site, ainda na época de The Concussion. Não era para que as pessoas me conhecessem ou algo do gênero, era apenas uma vontade viceral de poder conversar com alguém sobre o esporte – porque na escola praticamente não tinha ninguém.

Sou de uma época na qual gostar de futebol americano era esquisito, era exótico. Lembro-me nitidamente quando resolvi ir com a jersey de Michigan para o cursinho e via as pessoas olhando para mim com uma cara estranha. Na cabeça delas aquilo era uniforme de rapper dos anos 90 – não de um esporte que era o mais popular nos Estados Unidos.

Mas nem sempre foi assim. Até o final dos anos 1950 o futebol americano profissional não era levado a sério nos Estados Unidos. Nem de perto. Equipes iam à falência aqui e acolá. Steelers e Eagles tiveram que juntar elencos durante a Segunda Grande Guerra porque se não o fizessem, não teriam jogadores o suficiente. O New York Giants se chamava Giants para tentar pegar um pouco da fama dos irmãos do beisebol – o New York Giants que se tornaria San Francisco Giants anos depois. Estádios estavam sempre vazios e poucos acreditavam que o negócio daria certo.

Será que o futebol americano não é só mais uma modinha aqui no Brasil?

Confesso a você que eu mesmo já incorri nesse pensamento: que o futebol americano era algo passageiro e que sua popularidade seria como uma bolha no Brasil. Bom, felizmente me enganei – os dois jogos hoje provam isso. Quando conheci o futebol americano, ao início da década passada, eu era apenas uma criança que gostava de algo que praticamente ninguém gostava – ou que conhecia apenas por filmes da Sessão da Tarde, com suas traduções de quarterback para “zagueiro”. O crescimento exponencial da NFL a partir de quando Everaldo Marques e Paulo Antunes começaram a transmitir os jogos direto de São Paulo, em 2006, me intrigou bastante. Afinal de contas, o futebol sempre permaneceu como “o esporte” e vez ou outra aparecia um esporte “secundário” na cabeça das pessoas. O tênis com Guga, por exemplo. O atletismo nas Olimpíadas. Mais recentemente, o MMA e o surfe.

O grande ponto é que a popularidade do futebol americano não explodiu do nada. Não foi como se o Banco Central expedisse “moedas de popularidade” sem qualquer lastro. As sementes foram plantadas na década de 1990 com Luciano do Valle fazendo da TV Bandeirantes “o canal do esporte” – e de todos eles, inclusive da NBA, da sinuca e por óbvio da NFL. Ainda na década de 1990, a TV a Cabo começou a se fazer mais presente no Brasil. E a TV por satélite também – o crescimento da DirecTV e da SKY, que depois se fundiram, fez possível que cidades no interior tivessem acesso à programação de nicho da TV por assinatura. No caso, quando a Bandeirantes deixou de ter a programação esportiva como eixo motor, os fãs de futebol americano não ficaram órfãos – dado que a ESPN Internacional exibia o Sunday Night Football e o Monday Night Football, em tese os dois jogos mais importantes de cada rodada. O primeiro Super Bowl exibido pela ESPN no Brasil foi em janeiro de 1993, o Super Bowl XXVII entre Dallas Cowboys e Buffalo Bills.

De lá para cá, as sementes foram aos poucos brotando e criando raízes num público de nicho. Foram essas pessoas, a princípio, que começaram a popularização aqui no Brasil – como no “trabalho de formiguinha” que Everaldo sempre menciona quando fala sobre o envio de e-mails com a “apostila” de regras básicas. Ivan Zimmermann, André Adler, Marco Alfaro, Roberto Figueroa e toda a equipe de profissionais sitiados na sede da ESPN em Bristol, nos Estados Unidos, tiveram papel fundamental para as pessoas aqui no Brasil terem uma noção de que o esporte existe. Após 2006, em conjunto com a popularização da TV a Cabo e da Internet no Brasil, as pontes foram construídas para que o brasileiro pudesse chegar até o conhecimento (aliadas ao nível de entretenimento do esporte e da transmissão para o Brasil como um todo). O caminho costuma ser o mesmo: o entretenimento presente nas transmissões, a forma magnífica que a televisão americana trabalha o esporte e a noção de disputa de território fazem com que o esporte esteja longe de ser “modinha”.

O futebol americano (como o futebol e o rúgbi) é algo inerente a todo ser humano. Porque a “especificação” do ser humano, aparte do desenvolvimento da escrita, começa no momento que ele deixa meramente de ser um nômade para fixar território, desenvolver técnicas de agricultura e, bem, defender esse território. Seu cérebro, em termos evolutivos, não é muito diferente do cérebro desses ancestrais – é muito pouco tempo, milhares de anos, para que haja mutações significativas. É por isso também que existe uma certa timidez no flerte quando adolescente – temos as mesmas amarras emotivas daqueles ancestrais, que se “tomassem um fora” na aldeia, não teriam como procriar. Da mesma forma que a aldeia virou uma aldeia global, a disputa por território “aperta” alguns botões genéticos de forma lúdica com o futebol e seus filhos derivados, seja um deles o futebol americano. Falando em filhos, cada vez vejo mais amigos que amam futebol americano e que já estão tirando fotos de seus filhos com roupas dos Patriots, dos Packers… Da mesma forma que o amor pelo futebol passou de seu bisavô até você, o futebol americano deve testemunhar o mesmo processo.

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Aliás, falando nos três esportes irmãos, não é por acaso que a Copa do Mundo FIFA é a competição de esporte coletivo mais assistida do mundo, a Copa do Mundo de Rugby seja a mais assistida nos países colonizados pelo Império Britânico (fora os EUA e a Inglaterra, que se inserem nos outros dois) e que o Super Bowl, a final da NFL, seja ano após ano o evento mais assistido dos Estados Unidos. O ser humano ama futebol, na versão que for. Basta conhecer suas regras para se apaixonar. Porque são todos esportes que fazem parte de nossa essência enquanto espécie. A única coisa que em essência diferencia os três é o modo em que o território do adversário é conquistado e defendido por aquele.

Não é “pancadaria” desorganizada como uma briga de rua e nem um negócio que “para toda hora porque sim”. Menos ainda “um esporte de gringos”, isso outros também são. Menos ainda mera “modinha”, porque a partir do momento que entendemos as regras, fica impossível não se apaixonar.

O futebol americano veio para ficar no Brasil. O fato da ESPN ter liderado a TV a cabo (e não foi por segundos, a permanência média foi de quase duas horas) durante o Super Bowl 50 é mais um fato que comprova isso. O espaço pode ser comum, inclusive com outros esportes – americanos ou não. O esporte é o melhor entretenimento que existe: não tem spoiler, não tem roteiro e tudo acontece ao vivo.

O esporte trata de uma conquista de território que é inerente a todo ser humano, como dissemos no prólogo e ao início deste  capítulo. Podemos até não saber, mas já nascemos gostando de futebol americano. Basta conhecer o jogo e entendê-lo, da mesma forma que no Brasil e no resto do mundo as pessoas “nascem” gostando de futebol.

O que ocorre é que a bola redonda é o que temos contato primeiro porque, simplesmente, é o esporte já estabelecido como o “de pai para filho”. Tanto o rúgbi, quando o futebol, quanto o futebol americano tem em comum ancestrais comuns. Existem jogos de “território” com uma bola já na civilização Maia, na Dinastia Han – século I – na China e outros tantos exemplos. O mais notório talvez seja o calcio fiorentino, um jogo com bola no qual uma vila literalmente ia jogar contra a outra. Nesse jogo, tudo era válido para impedir que o oponente tivesse a posse de bola – até mesmo socos.

Screen Shot 2016-06-18 at 5.44.11 PMDe uma forma ou de outra, a espinha dorsal de todos os “futebóis” é a questão da conquista de território e a “ludificação” de conceitos bélicos, tão inerentes ao ser humano quando sua própria existência. O primeiro momento no qual podemos diferenciar com mais clareza o ser humano dos outros animais é justamente quando ele começa a ter o anseio de fixar a posse de um dado território – e de defendê-lo. Isso acontece como objetivo em todos os “futebóis”. No da bola redonda, o de conquistar a área adversária e colocar  a bola dentro do gol – e no futebol americano/rúgbi o de chegar na “área” do adversário.

Mais do que cultura americana, o Super Bowl é um dos eventos que representa o pináculo dos anseios mais humanos, de ter um lugar para chamar de seu – mesmo que seja a end zone adversária. Uma vez por ano, todos assistem para ver qual cidade leva a melhor numa batalha física que dura todo o outono. Exatamente igual aquela que aconteceu na China há dois mil anos, em Florença há 500 ou na Inglaterra há 200. O futebol, seja na versão que for, é o esporte mais próximo de representar do que existe de mais humano. Por isso é o mais popular nos Estados Unidos e não duvido de sua crescente popularidade aqui. 

A imagem que ilustra este post e esta, ao lado, eram impensáveis há 10 anos. Um campo utilizado na Copa do Mundo FIFA de 2014 com marcação de jardas. Com público bom – e ainda faltavam duas horas para o início da partida. Um dia disseram nos Estados Unidos que a NFL nunca seria mais popular do que o beisebol. Podem dizer o mesmo no Brasil em relação ao futebol e, sinceramente, é quase impossível ultrapassar a bola redonda em popularidade. Nem desejo isso, não mudaria meu amor pela bola oval. Mas ver dois estádios de futebol “convertidos” para o Minas Bowl e o Gigante Bowl é algo que me deixa realizado.

Porque a época mudou. Se eu pudesse voltar no passado e falar com aquele Antony de 15 anos, nerd e desengonçado, que gostava de um esporte que quase ninguém mais gostava… Eu diria que deu certo. Que ele não estava maluco. Para que ele continuasse amando aquilo como mais nada em sua vida. Para que ele continuasse a tentar explicar para as pessoas que o time tinha quatro chances para passar “da linha laranja”. Porque um dia aquilo seria grande, porque as pessoas iam dar uma chance. Deu certo. E é só o início.

OBS: Obrigado aos perfis “Prints da NFL” e ao Wendell Ferreira (do blog Prime Time, do jornal Zero Hora) por postar as imagens no Twitter. 

Primeira Leitura, excepcionalmente nesta semana como fora na semana passada, foca-se apenas neste ensaio. Na semana que vem voltamos com a coluna em sua estrutura normal. Você pode mandar seu feedback para meu twitter em@CurtiAntony ou via email para curti@profootball.com.br

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