Este texto foi publicado pela primeira vez no ProFootball no dia 29 de junho de 2018, mas dadas as atuais circunstâncias, um Super Bowl entre Kansas City Chiefs e San Francisco 49ers – apelidado por alguns de “Joe Montana Bowl” -, julgamos que ele seja mais relevante do que nunca. Por isso, decidimos o republicar com algumas pequenas alterações.
***
Qual a primeira coisa que vem à sua cabeça ao pensar em Joe Montana? Provavelmente é a imagem do quarterback vestindo a camisa número #16 do San Francisco 49ers, franquia pela qual venceu quatro Super Bowls e nos proporcionou alguns dos momentos mais épicos da história do futebol americano.
Montana é um daqueles casos especiais de jogadores que quase literalmente tornaram-se o rosto de suas equipes. Hoje é impossível pensar em San Francisco sem pensar no seu lendário quarterback (ou vice-versa), assim como, usando exemplos mais recentes, não dá para pensar em New England Patriots ou Baltimore Ravens e esquecer de Tom Brady ou Ray Lewis. Essa forte ligação com os 49ers certamente é o motivo para a curta (embora marcante) passagem de “Joe Cool” pelo Kansas City Chiefs ser um assunto tão pouco explorado e, muitas vezes, quase esquecido.
Foram apenas dois anos em Kansas City e, a bem da verdade, o principal objetivo não foi atingido – ou seja, ganhar o Super Bowl. Porém, Montana deixou sua marca: ajudou os Chiefs a voltarem a ser relevantes na NFL. Tudo isso aos 37 anos de idade e após duas temporadas praticamente inteiras perdidas devido a uma lesão no cotovelo.
O começo do fim da história de Joe Montana nos 49ers coincidiu com o surgimento de um outro ídolo da franquia: Steve Young, o antigo reserva que ganhou espaço por conta dos sucessivos problemas físicos do titular. O que aconteceu, então, foi um litígio entre o ídolo e a equipe, culminando em uma polêmica transferência para os Chiefs, algo que em certa medida lembra a controversa saída de Brett Favre do Green Bay Packers.
Lesões e a ascensão de Steve Young resultaram no fim da “Era Joe Montana” em San Francisco
É muito triste quando um jogador tem a carreira atrapalhada pelo excesso de lesões, sobretudo quando o jogador em questão é um dos maiores nomes do esporte. Foi exatamente o que ocorreu com Joe Montana. Tudo começou com o sack de Leonard Marshall, defensive end do New York Giants, na Final da Conferência Nacional de 1990. O quarterback sofreu uma concussão e precisou abandonar aquela que seria sua última partida de playoff com a camisa de San Francisco.
Alguns meses mais tarde, Joe machucou o cotovelo em um jogo válido pela pré-temporada de 1991. A grave lesão o deixou muito tempo fora de combate, tanto que ele apenas retornou aos gramados na semana 17 de 1992. Na ocasião, jogou o segundo tempo da vitória por 24 a 6 sobre o Detroit Lions. Montana teve uma atuação excelente (15/21 passes certos, dois touchdowns e nenhuma interceptação) em sua partida derradeira como membro da franquia da Califórnia.
Enquanto isso, Steve Young assumiu o comando do ataque e teve um desempenho espetacular. Reserva por quatro anos, Young liderou a liga em rating (1991 e 1992) e passes para touchdown (1992) durante a ausência do antigo titular. Ademais, foi eleito o MVP de 1992 e ajudou os 49ers a chegarem ao NFC Championship Game da mesma temporada. Ou seja, a ascensão de Young culminou com o retorno de Montana, deixando ambos em rota de colisão.
Como colocar o MVP da temporada de volta no banco de reservas? Por outro lado, o que San Francisco poderia fazer com o maior ídolo da sua história, sendo que ele ainda tinha intenção de ser titular na NFL? Os 49ers se viram obrigados a tomar uma decisão muito difícil em 1993.
A troca com Kansas City
Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que San Francisco não mandou embora seu antigo ídolo de maneira fria e sem coração, como muitas equipes costumam fazer. Na verdade, a intenção era ficar com Montana, tanto que a titularidade foi oferecida de volta para ele durante a intertemporada. O quarterback, contudo, não aceitou. O motivo: ele não queria manter a controvérsia na posição com Young e nem causar um racha no vestiário. Joe, então, requisitou ser trocado e não reconsiderou nem com o pedido pessoal de Eddie DeBartolo Jr., à época o proprietário da franquia.
Segundo relatos, DeBartolo, magoado, dificultou ao máximo que pôde o negócio, mas não o impediu. Talvez o dirigente tivesse um desejo sincero de manter o ídolo, ou talvez ele só estivesse com medo da opinião pública e das críticas que seriam feitas pelos fãs dos 49ers. Seja como for, o fato é que enquanto Montana pedia para ser trocado, Steve Young pressionava do outro lado, tanto que chegou a dar um ultimato: ou continuaria como titular ou também pediria para sair.
No final das contas, por linhas tortas, tudo deu certo para todo mundo. Montana foi para um time onde voltou a ser titular. Steve Young se tornou o novo franchise quarterback de San Francisco. Hoje a decisão de ficar com ex-reserva obviamente se mostrou a mais correta, porém não era tão simples assim na época. Ele, por exemplo, ainda não era unanimidade entre os torcedores – isso só aconteceu após a conquista do Super Bowl XXIX.
É claro que a possibilidade de contar com um futuro Hall of Famer mexeu com o mundo da NFL, mas apenas duas franquias negociaram oficialmente: Kansas City Chiefs e Phoenix Cardinals. Montana preferiu a equipe do Missouri, portanto pediu para ser trocado para lá. Seguiram-se então duras negociações entre os general managers Carmen Policy e Carl Peterson, até que no dia 21 de abril de 1993 o negócio foi enfim anunciado.
Os Chiefs receberam Montana, o safety David Whitmore e uma escolha de 3ª rodada no Draft 1994, enquanto os 49ers, em contrapartida, ficaram com uma escolha de 1ª rodada em 1993 (18ª geral). Uma curiosidade: após dois trade downs, a pick acabou sendo utilizada em Dana Stubblefield, um ótimo defensive tackle que inclusive chegou a ser eleito o defensor do ano em 1997. Ou seja, San Francisco realmente não teve motivos para reclamar da troca.
A passagem pelos Chiefs e a aposentadoria
Montana assinou por três temporadas e 10 milhões de dólares – como você pode notar, quarterbacks ganhavam um pouco menos há 25 anos. De acordo com o general manager Carl Peterson, Joe foi super bem recebido pelo elenco de Kansas City, que ficou maravilhado com o quarterback em seu primeiro treinamento. Ele, entretanto, não foi a única aquisição de peso: a franquia também contratou o running back Marcus Allen, ex-estrela do Los Angeles Raiders. Ainda segundo Peterson, Allen só aceitou assinar com os Chiefs depois de saber que atuaria ao lado de Montana.
Reforçado no ataque com dois futuros membros do Hall da Fama, Kansas City sentiu que estava pronto para voltar aos holofotes da liga e tentar uma arrancada rumo ao Super Bowl, algo que não ocorria há 23 anos, quando sagrou-se campeão. Entre 1969 a 1992, a equipe foi apenas quatro vezes aos playoffs e conseguiu uma única vitória (Wild Card de 1991).
Montana, impossibilitado de usar sua tradicional camisa #16 pelo fato dela ter sido aposentada em honra a Len Dawson, assumiu o número #19. Embora não tenha feito uma temporada regular brilhante (11 jogos, 2,144 jardas aéreas, 13 touchdowns e sete interceptações), mesmo assim foi eleito para o último Pro Bowl da carreira em 1993. Em todo o caso, ele ajudou os Chiefs a terminarem com uma campanha 11-5 e conquistarem o título da AFC West, algo que não acontecia desde 1971.
O melhor, contudo, ficou guardado para os playoffs. Montana comandou duas belas viradas contra Pittsburgh Steelers e Houston Oilers respectivamente no Wild Card e Divisional Round. Diante de Pittsburgh, chegou a ir para o vestiário perdendo por 17 a 7, mas trouxe o time de volta à briga no último quarto, empatando o confronto e vencendo na prorrogação. Já contra Houston vimos o último milagre de “Joe Cool”, com Kansas City anotando 21 pontos no quarto final e triunfando por 28 a 20. Essa foi por muito tempo a última vitória dos Chiefs no mata-mata, tabu quebrado apenas em 2015 com o massacre de 30 a 0 sobre o Houston Texans.
Kansas City só parou na Final da AFC diante do Buffalo Bills de Jim Kelly. Após seus dois milagres, Montana teve uma atuação bastante apagada (9/23 passes completos, 125 jardas e interceptação), inclusive sendo substituído por Dave Krieg ao longo da partida. No final, Buffalo venceu tranquilamente por 30 a 13 e avançou ao Super Bowl, onde mais tarde acabaria perdendo para o Dallas Cowboys.
Aos 38 anos de idade, o quarterback retornou para uma última temporada na NFL em 1994. Desta vez, atuou por 14 partidas e melhorou seus números em relação à temporada regular anterior, mas os Chiefs terminaram com um record 9-7. Foi o suficiente para conseguir a segunda colocação na divisão e uma vaga nos playoffs, porém Joe caiu logo no Wild Card para outro velho conhecido: Dan Marino. Ele teve um desempenho consistente na última partida da carreira, acertando 26 de 37 passes para 314 jardas, dois touchdowns e apenas uma interceptação, contudo não foi capaz de impedir a vitória dos Dolphins por 27 a 17.
No dia 18 de abril de 1995, pouco menos de dois anos depois de ser trocado com os Chiefs, Montana organizou um grande evento para anunciar sua aposentadoria do futebol americano. Assim encerrou-se sua vitoriosa carreira e a sua breve passagem por Kansas City. Mesmo sem levantar nenhum troféu, Joe conseguiu ajudar a tirar do limbo uma franquia que há tempos vivia mergulhada na irrelevância.
Nos anos seguintes, os Chiefs voltaram a ser coadjuvantes na NFL durante a maior parte do tempo. Isso só mudou a partir de 2013 com as chegadas de Andy Reid e Alex Smith, quando a equipe se tornou uma das principais forças da AFC e passou a se classificar regularmente aos playoffs. O processo, agora, atingiu o seu ápice com Patrick Mahomes e a vaga no Super Bowl LIV. Por uma daquelas ironias da vida, o adversário na decisão será os 49ers, justamente quem possibilitou, indiretamente, a passagem de Joe Montana no Missouri. Nada mais justo, portanto, do que chamar esse duelo de “Joe Montana Bowl”.
