História: Os loucos anos de Bill Belichick (e Nick Saban) no Cleveland Browns

Hoje em dia, Bill Belichick e New England Patriots são praticamente sinônimos. É quase impossível pensar em um sem imediatamente lembrar do outro. Mas acredite, nem sempre foi assim. Belichick já fazia estrago na NFL muito tempo antes da sua parceria com Tom Brady. Por exemplo, como coordenador defensivo dos Giants, foram dois anéis de Super Bowl conquistados, além de um plano de jogo defensivo colocado no Hall da Fama – aquele utilizado para conter Jim Kelly e o ataque do Buffalo Bills no Super Bowl XXV.

Bill, entretanto, não viveu apenas de glórias sua carreira inteira. Houve uma época em que ele foi apenas um treinador novato, mal-humorado e odiado por todo mundo, principalmente sua própria base de fãs. Uma época em que seu time mais perdia do que ganhava e nunca ia aos playoffs.

Como você já deve ter imaginado pelo título do texto, estamos falando dos anos de Belichick como treinador do Cleveland Browns, a primeira franquia a lhe dar uma oportunidade como head coach. Entre 1991 e 1995, Bill foi o técnico da equipe, acumulando um medíocre retrospecto total de 36 vitórias e 44 derrotas, uma única ida aos playoffs e apenas um jogo de pós-temporada ganho. Tal vitória, por sinal, aconteceu justamente sobre os Patriots, em 1994, e até hoje é o último triunfo dos Browns em mata-mata.


“STEELERS"
Mesmo sem ter tanto sucesso dentro de campo, a passagem de Belichick por Cleveland pode ser considerada um marco na história da liga, sobretudo pelos seus desdobramentos, os quais incluem o destino de três franquias e vários personagens responsáveis por ditar o futuro do futebol americano, tanto na NFL quanto no College Football, nos anos e décadas seguintes.

Belichick fracassou nos Browns?

É inegável que os resultados deixaram a desejar e, olhando em retrospectiva, Belichick acabou cometendo vários equívocos, mas é preciso um pouco de contexto antes de taxar o seu trabalho em Cleveland como um completo fracasso.

Os Browns viveram uma das eras mais gloriosas de sua história na segunda metade da década de 1980. Conhecido como “Kardiac Kids”, o time chegou à três Finais de Conferência Americana entre 1986 e 1989, sempre perdendo para o Denver Broncos – de John Elway. Duas destas derrotas, aliás, são icônicas devido à maneira traumática como ocorreram, sendo posteriormente imortalizadas pelos nomes “The Drive” e “The Fumble”.

Os anos de ouro, contudo, chegaram ao fim no ano de 1990, quando a franquia somou um péssimo record 3-13. O elenco estava envelhecido e desgastado, Bernie Kosar parecia não ser mais o mesmo e uma grande reformulação, tanto de jogadores quanto de mentalidade, era necessária. Foi assim que Belichick entrou em cena.

Ernie Accorsi, antigo general manager da franquia, decidiu apostar no jovem, porém consagrado, ex-coordenador defensivo. Bill foi contratado com a missão de reconstruir a franquia, peneirando novos atletas, refazendo a comissão técnica e, acima de tudo, implantando sua própria filosofia de trabalho. O novo head coach teve fazer todo o “trabalho sujo”, o que nunca é uma tarefa fácil.

O chamado “Patriot Way”, ou seja, o vitorioso método de Belichick em New England, na verdade deu seus primeiros passos em Cleveland. Lendo e ouvindo os relatos da época podemos perceber isso. O trabalho e a cobrança incessantes, as longas horas de scout, análise e preparação, o mau-humor característico, a coragem para tomar decisões difíceis – como cortar o maior ídolo do time -, tudo isso já estava presente nos Browns. Podemos dizer que foi um grande primeiro ensaio da Era Belichick na NFL.

Em curto prazo, realmente não deu certo. Todavia, quando o trabalho estava começando a render frutos, foi subitamente interrompido. Em 1994, sob a tutela de Belichick e do coordenador defensivo Nick Saban, Cleveland teve a melhor defesa da liga em média de pontos cedidos (12,8). Um ano mais tarde, Art Modell decidiu levar o time para Baltimore e mandou Bill e quase todo mundo para o olho da rua.

Quem sabe o que teria acontecido se Modell tivesse tido mais paciência com Belichick? Talvez a maior dinastia do século XXI tivesse mudado de endereço. Aliás, conforme veremos mais para frente, o trabalho de Bill de fato ajudou na conquista de um Super Bowl (mas não em Cleveland), então é injusto dizer que a sua passagem pela franquia foi um absoluto fracasso.

O povo de Cleveland contra Bill Belichick

Atualmente é fácil aceitar a personalidade difícil de lidar de Belichick, afinal com ele empilhando vitórias e troféus há pouca margem para críticas. Deste modo, muitos minimizam suas azedas entrevistas coletivas ou mesmo os relatos de atritos internos dentro dos Patriots, como o suposto racha entre ele, Brady e Robert Kraft. Todavia, sem a legitimidade criada pelos e vitórias, a situação era bastante diferente nos Browns.


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Imagine um treinador agindo como Belichick age, mas chegando no domingo e perdendo. Bom, vários ex-assistentes dele acabaram sendo assim na NFL. Ele mesmo foi. Obviamente ele seria bombardeado de críticas, questionado e até mesmo odiado. Em suma, essa era a rotina de Bill em Cleveland, onde ele tretou com a mídia, a torcida e o próprio Art Modell, o dono da franquia.

Em relação à impressa, Belichick não era exatamente adorado pelas suas entrevistas chatas, sem graça e pela pouca abertura que ele dava os jornalistas, tal como ocorre hoje em dia em Foxborough. Inclusive, ele supostamente teria sido apelidado de “The Voice of Doom” (algo como “A Voz do Apocalipse”, ou “A voz do Fim do Mundo”) pelos jornalistas de Cleveland – outra versão da história diz que o apelido foi dado pelos próprios jogadores.

O relacionamento com Modell, por sua vez, também era tenso. Art faleceu em 2012 e até seus últimos dias não nutria simpatia pelo seu ex-técnico. Quando Bill estava prestes a ser anunciado pelos Patriots, Modell chegou ao ponto de afirmar para Robert Kraft que contratá-lo seria o maior erro da sua vida.

Talvez o maior motivo de discórdia entre ambos tenha sido a aquisição do wide receiver Andre Rison, em 1995. Belichick queria contar com o recebedor, então Cleveland assinou um rico contrato de 17 milhões de dólares com ele. O detalhe, porém, é que Art precisou ir ao banco e fazer um empréstimo de cinco milhões para viabilizar o acordo. Naquele tempo, Modell enfrentava dificuldades financeiras e um empréstimo certamente não o deixou feliz.

Para piorar, Rison foi um tremendo fiasco, jogando mal dentro de campo e brigando com a torcida fora dele. Resumindo, após receber vaias no antigo Cleveland Stadium, o wide receiver disse que os fãs locais só atrapalhavam e que a franquia estaria muito melhor em Baltimore.

Contudo, a principal desavença de Belichick era com a sua própria torcida. Ele era simplesmente odiado pelos fãs do time, tanto que muitos o culpam diretamente pela diminuição na venda de ingressos para a temporada entre 1991 e 1995.

A hostilidade atingiu níveis estratosféricos em 1993, quando o treinador decidiu cortar Bernie Kosar. O quarterback havia nascido em Ohio, se dizia torcedor dos Browns e liderou a franquia no seu período de glória dos anos 1980, portanto a ideia de mandá-lo embora não pegou bem. Os fãs imediatamente reagiram com vaias e protestos pedindo a demissão de Belichick.

O head coach, porém, seguiu firme com a sua decisão, acreditando que os melhores anos de Kosar já haviam ficado para trás e dando continuidade ao processo de renovação do elenco, mais uma prova de que o futuro “Patriot Way” já estava em funcionamento. O problema é que as apostas em nomes como Vinny Testaverde, Mark Rypien e Eric Zeier deram errado, o que aumentou a pressão sobre Belichick.

Por fim, vale uma última consideração.

Alguns membros da comissão técnica também não lembram daquela época com muito carinho, de novo reclamando da falta de diversão. Gary Tranquill, técnico de quarterbacks entre 1991 e 1993, afirmou o seguinte: “Nós estávamos de mãos atadas – vamos colocar deste jeito. Eu não tinha nenhuma diversão treinando lá. É simples assim”.

Opiniões como a de Tranquill são minoria, haja vista a maior parte do antigo staff de Belichick tratá-lo com admiração e até gratidão pelas lições aprendidas, mas relatos assim mostram que havia sim um certo desgaste nas relações.

Retroativamente, a melhor comissão técnica da história?

Dentro de campo, aquelas equipes dos Browns realmente não eram muito boas, mas, fora dele, Bill conseguiu montar um verdadeiro Dream Team de futuros talentos (ainda não o eram, vale lembrar). Ao todo, nove membros das suas comissões técnicas futuramente iriam se tornar head coaches ou general managers na NFL. Entre eles estão: Ozzie Newsome (general manager dos Ravens há 22 anos), Tom Dimitroff (atual gerente dos Falcons), Eric Mangini, Scott Pioli (co-arquiteto da primeira parte da dinastia em New England) e Jim Schwartz (coordenador defensivo campeão do Super Bowl com os Eagles).

Ademais, Bill também contou com nomes importantíssimos no cenário do College Football. Entre eles estão Kirk Ferentz, head coach de Iowa desde 1999, e um certo Nick Saban, simplesmente o treinador mais vitorioso de todos os tempos no futebol americano universitário. Aliás, a amizade entre Belichick e Saban é uma história tão interessante que merece ser tratada em detalhes.

Saban trabalhou com o pai de Bill, Steve Belichick, em Navy no ano de 1982. O jovem causou uma impressão muito positiva em Steve e passou a frequentar sua casa, onde eventualmente conheceu Bill – na época ele já estava com os Giants. A partir de então, ambos mantiveram contato e tornaram-se amigos, sempre que possível promovendo encontros particulares para conversar, sobretudo, sobre futebol americano.

Nick seguiu seu caminho no College Football por mais algum tempo, até se juntar ao staff do Houston Oilers, em 1988, como técnico de secundária. Em 1990, teve sua primeira experiência como head coach, na Universidade de Toledo. No ano seguinte, porém, foi convidado pelo seu amigo para ser o novo coordenador defensivo do Cleveland Browns.


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Embora fossem adeptos de uma filosofia defensiva diferentes – Saban, por exemplo, preferia um esquema base 4-3, enquanto Belichick vinha de uma escola 3-4 ensinada pelo seu mentor Bill Parcells -, ambos se entenderam e levaram Cleveland à excelência defensiva em 1994. Nick deixou o cargo em 1995, após ganhar o emprego de treinador principal em Michigan State, universidade onde passou boa parte da década de 1980.

Esta foi a única vez que os amigos de longa data trabalharam juntos. Alguns anos mais tarde, eles se reencontram na NFL, mas dessa vez como rivais de divisão – Belichick comandando os Patriots e Saban os Dolphins. Todavia, a colaboração e o intercâmbio de informações, conhecimento e pessoas nunca pararam. Josh McDaniels, por exemplo, trabalhou com Saban em Michigan State antes de ir para New England. Em contrapartida, Brian Daboll, coordenador ofensivo de Alabama em 2017, ganhou notoriedade como treinador de wide receivers dos Patriots entre 2002 e 2006.

Dispensado por Belichick, Bernie Kosar havia sido um dos melhores quarterbacks dos anos 1980

Art Modell decreta o fim da era Belichick e do “Cleveland Browns original”

Alegando dificuldades financeiras e um risco iminente de ir à falência, Modell decidiu mudar sua franquia de cidade em 1995, empacotando as coisas e indo para Baltimore ao final da temporada. Assim surgiram os Ravens e os “Browns originais”, datados de 1946, chegaram ao fim.

Três anos mais tarde, em 1999, o mundo conheceu o “novo Cleveland Browns”, uma franquia recém-criada, mas que assumiu a história e as estatísticas do time “surrupiado” por Modell. Os Ravens, por sua vez, é que passaram a ser tratados como a franquia de expansão, embora, na teoria, fosse o contrário.

A polêmica decisão vazou para a imprensa no meio da temporada regular de 1995 e, mais tarde, foi oficialmente confirmada pelo proprietário. Por coincidência ou não – provavelmente não -, o time implodiu a partir do anúncio. Cleveland estava 4-4 e com expectativas de ir aos playoffs, mas perdeu sete dos seus oito compromissos seguintes, terminando com um frustrante 5-11 – a quarta temporada de Belichick com mais derrotas do que vitórias.

Em 1996, depois de mais uma decepção e querendo começar do zero em sua nova casa, Art demitiu Belichick. Ironicamente, ele antes havia garantido a permanência do treinador, porém mudou de ideia. Por isso que os fãs dos Browns ficavam bravos quando alguém ri deles por, supostamente, terem dispensado o head coach mais vitorioso da história da liga. No papel, Belichick foi demitido mesmo pelo… Baltimore Ravens – que nos anos de Patriots foi uma pedra no sapato de Bill em algumas ocasiões.

Seu legado, contudo, perdurou – e, pensando bem, perdura até hoje -, por isso podemos considerar que ele ajudou, em partes, a equipe a vencer o Super Bowl em 2000.

Após a demissão, a estrelada comissão técnica de Belichick se dividiu. Alguns, posteriormente, se juntaram a ele de novo em New England (casos de Dimitroff, Mangini e Pioli), enquanto outros permaneceram com os Ravens por mais alguns anos (Newsome, Schwartz e Ferentz).

Deste modo, a “nova franquia” manteve uma certa continuidade com a era Belichick. Além dos profissionais, vale destacar também a permanência da filosofia e método de trabalho implantados pelo antigo head coach, fatores apontados como responsáveis pelo rápido sucesso de Baltimore.

Sem dúvida alguma, Newsome é o nome mais importante de todos.

Erros e acertos à parte, ele fez um ótimo trabalho mantendo o time dos Ravens competitivo durante boa parte dos últimos 20 anos. E isto não deixa de ser uma facada no coração dos torcedores de Cleveland. Ozzie foi um dos grandes ídolos da história dos Browns, um tight end com carreira de Hall da Fama. Mesmo assim, isso não o impediu de se juntar à franquia que “traiu” a cidade.

A sólida trajetória do Baltimore Ravens na NFL é uma espécie de indício do que a equipe poderia ter atingido se Modell, por acaso, tivesse cumprido sua palavra de não demitir Belichick. Claro que não dá para saber se esses seriam draftados por Bill, mas Ray Lewis e Jonathan Ogden, linebacker e offensive tackle no Hall da Fama, foram escolhidos com picks originalmente pertencentes… Bem, aos Browns.

Com dois títulos de Super Bowl na conta, a franquia talvez não tenha muitos motivos para lamentar, embora hoje faça sentido imaginar se uma dinastia em Maryland não era apenas uma questão de tempo.


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