Crônica: Ao mestre, com carinho

Ok, é a última crônica sobre você. Daqui para frente vou ter que entender que agora você não estará mais passando a bola.

É difícil parar de fazer algo que você gosta de fazer. Se eu não sei como farei sem assistir seus jogos, sem comentar sobre seus jogos ou escrever sobre eles, imagine para você que está em campo. Quando eu entrava na cabine para comentar um jogo seu, eu sabia que seria diferente. Fui egoísta com essa frase. Nem torcer para os Colts eu torço. Também não torço para os Broncos. Talvez quem começou a acompanhar o esporte por conta dele tenha mais legitimidade para falar sobre. Mas, acima de tudo, torço pelo futebol americano, é a coisa mais importante da minha vida. Ver um pedaço dela ir assim, embora, dói.

Dizem que o atleta morre duas vezes. Quando se aposenta e quando seu coração para de bater. Para quem ama o esporte, talvez seja pior. O coração do torcedor para de bater múltiplas vezes. A ficha demora para cair: comecei a escrever este texto no domingo de manhã, ainda no calor da sua aposentadoria. Imaginei que em “doses homeopáticas” seja mais fácil assimilar… Ok, não está sendo. Não foi. Amanhã, depois de ter que traduzir simultaneamente suas últimas palavras como jogador, a primeira coisa que farei será tentar lembrar qual era a primeira lembrança que tive com você.

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Talvez uma das minhas próprias primeiras lembras com o esporte. Eu era adolescente e não era lá muito sociável. Dei o azar de gostar de um esporte que, bem, na época quase ninguém gostava. Então indiretamente, quando estava jogando Madden contra você, era como se eu estivesse conversando contigo. Na verdade eu tinha raiva, não gostava de como o video game simulava com perfeição toda a leitura antes do snap, com audiblescheck with mehot routes e todo o mais. Como eu era nerd viciado ao ponto de jogar na maior dificuldade disponível, você sempre dava um jeito de me bater. De fazer minha diversão virar irritação, de fazer com que eu quisesse atear fogo no PlayStation. Como se não bastasse, você venceu meu time na última vez que ele chegou ao Super Bowl. Esse ódio momentâneo se transformou em admiração. Aos poucos, comecei a ver que aquilo era o futebol americano de verdade: leitura, inteligência.

VEJA AQUI O ÍNDICE COMPLETO DA COBERTURA DA APOSENTADORIA DE PEYTON MANNING

Tentei depois lembrar qual seria minha última lembrança. Não seria necessariamente ele erguendo o troféu do Super Bowl 50 – algum canto imbecil da minha mente poderia argumentar que ele não jogou bem na partida. Queria que fosse um momento que materializasse toda sua excelência, toda sua ética pessoal. Lembrei de quando minha ficha caiu de que aquele seria, de fato, o último rodeio. Eu estava no Estúdio 3, da ESPN, ainda um pouco cansado pelo Abre o Jogo. Como uma cobertura realizada in loco precisa sempre de pessoal “na retaguarda” caso um apagão a là Super Bowl XLVII aconteça, estava assistindo ao jogo no estúdio. Eis que veio a apresentação dos MVPs de todos os Super Bowls. Todos eles no campo. Menos um, concentrado e sozinho. Focado como sempre.

Aquela cena acontecia enquanto seu irmão ia a campo como MVP, enquanto seu nêmesis Tom Brady ia a campo como MVP – e ele só podia ouvir as palmas, os gritos. Na verdade ele não ouvia nada. Como qualquer outro jogo, focava-se na parede com sua própria mente. Aquela mente que sempre nos brindou com leituras de jogo, aquela mente que sempre nos brindou com a essência do futebol americano: um xadrez físico. Alguns vão dizer que estou sendo melodramático, que estou exagerando; Mas não vou negar que meus olhos ficaram marejados de ver aquela cena. Porque quando a vi pela primeira vez, no fundo, eu sabia que seria a última. Dou liberdade a essas pessoas para pensar o que quiser, da mesma forma que você o fez quando lhe acusavam de lançar patos mortos. E continuou trabalhando. E continuou lançando.

Como seria se Peyton Manning escrevesse uma carta ao se reencontrar com o troféu do Super Bowl? Confira nesta crônica.

Quando um jogador desse tamanho tem um legado como este, sua aposentadoria é apenas mais uma página virada. O nome Peyton Manning, mesmo que todos os passes sejam passados, sempre será passado de você para seus filhos e para seus netos. Daqui 30 anos, você poderá dizer que ouviu um Omaha, que viu ele em campo, como seu avô diz ter visto Pelé e seu pai diz ter visto Maradona. Da mesma forma, em nosso esporte, Peyton me ensinou como é ser um professor, como é ser dedicado. Como é ter ética. Como é saber que trabalhando um dia vou colher coisas boas. 

Como posso retribuir? Se eu pudesse comprar uma fonte da juventude, o faria. Se pudesse comprar uma parede enorme para que todos pudessem ler tudo o que você fez, o faria. E rabiscaria com todas estas palavras, cada uma com letras de dez metros de altura.

Ao mestre, com carinho. 

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