Fora de Jogo: Aaron Rodgers e sua inesperada cruzada contra os fatos

O quarterback, que meses atrás apresentou um programa pautado em fatos, se distancia deles e polui as águas do discurso público

Fora de Jogo é a coluna semanal de Eduardo Miceli no ProFootball com temas que vão além da end zone. Siga Eduardo no Twitter em @MiceliFF

Poucas coisas me divertem mais do que perguntas e respostas. Um quiz, uma noite de trivia, sentar ao redor de uma mesa com os clássicos de tabuleiro Master e Trivial Pursuit. Não à toa, meu programa de televisão favorito é “Jeopardy!”, um dos mais populares game shows dos Estados Unidos. São três competidores, submetidos a 61 perguntas por episódio, sobre os mais diversos temas. O grande diferencial do programa é que os convidados devem responder às dicas em formato de pergunta. Por exemplo, se a dica diz “este jogador, selecionado em 2004 no Draft da NFL, disputou dois Super Bowls contra o New England Patriots e foi MVP nas duas oportunidades”, a resposta deve ser dada como “Quem é Eli Manning?”.

O lendário apresentador deste fenômeno interminável da televisão americana foi, desde sua versão mais moderna, de 1984, Alex Trebek. Infelizmente, em novembro de 2020, o amado host faleceu e, naturalmente, surgiu uma lacuna na programação diária dos Estados Unidos.

Você, caro leitor, deve estar se perguntando aonde eu quero chegar. Estamos quase lá, confie. Pois bem. É importante saber que os fãs de “Jeopardy!” são profundamente apaixonados por fatos, sejam eles relevantes, aquela informação que você já soube, ou aquela partícula de conhecimento tão específica que chega a ser absurdo que alguém se lembre. Há um grande escrutínio para ser apresentador deste programa, e muito dele passa por ser alguém que se mostre apaixonado por fatos, que demonstre, de alguma forma, carinho pelo universo de trivia.

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Na busca por um novo nome para comandar a atração, o programa trouxe apresentadores convidados. Dentre eles, ninguém mais ninguém menos que um ex-campeão do “Celebrity Jeopardy!” – Aaron Rodgers. Entre os dias 5 e 16 de abril de 2021, o quarterback do Green Bay Packers desfilou segurança e tranquilidade como apresentador convidado, e foi um dos favoritos do público para eventualmente se tornar o host fixo do programa idealizado por Merv Griffin.

Claro, tudo isso antes das declarações do camisa 12 na última semana.

A grande notícia dos últimos dias, com impactos dentro e fora de campo é, sem dúvida, a postura de Aaron Rodgers após ser diagnosticado com COVID-19. Além de deixar o time sem seu principal jogador por pelo menos 10 dias, o signal caller trouxe uma série de declarações que vai na contramão de tudo que o programa que apresentou meses antes representa.

Há um processo de desconstrução da figura do Aaron Rodgers profundamente estudioso. Ao alardear para quem quisesse ouvir uma série de inverdades no podcast de Pat McAfee, Rodgers aproveitou a plataforma que construiu meticulosamente ao longo dos anos para poluir as águas do discurso público. Escolha o argumento cientificamente destruído que quiser – alergia a um ingrediente nas vacinas, infertilidade causada pelos imunizantes, uso de ivermectina como tratamento contra a COVID-19, dentre tantos outros. Nenhum deles tem respaldo pela comunidade científica.

Mais do que isso, Rodgers tenta se apropriar dos dizeres de Martin Luther King para se opor à vacinação, uma falsa simetria afrontosa à memória e legado do vencedor do Prêmio Nobel da Paz. Jogando nas costas da “woke culture” a chuva de críticas que recebeu (e ainda está recebendo), Rodgers tira de si a responsabilidade pelo seus atos. Ao se declarar um “pensador crítico” – algo que suas declarações demonstram estar longe de ser, vide a ausência de respaldo do método científico -, Rodgers legitima e valida um discurso perigoso e há muito defasado.

Depois de dar a entender que se vacinou ao mencionar estar imunizado e que “respeita quem não se vacinou nos Packers”, Rodgers aproveita a plataforma de intelectualizado para, no bom e velho português, mentir no cenário público.

Apresentador de um dos programas que goza do status de um santuário para fatos meses atrás, hoje lança uma cruzada contra eles. O quarterback tem uma gigantesca esfera de influência como um dos líderes da sua posição da NFL. Crianças, adolescentes, adultos, apaixonados por esportes ouvem um dos grandes quarterbacks, e, de alguma forma, assimilam seus argumentos, seja apoiando ou rechaçando suas bravatas. Se considerarmos ainda se tratar dos Estados Unidos, cujo movimento anti-vacinação é significativo, o discurso de Rodgers é ainda mais daninho. Não há como fugir da responsabilidade de ser um porta-voz para um grande público, e propagar falsas informações e boatos não-corroborados é usar sua plataforma não para o benefício geral da sociedade, mas para promover incerteza durante uma devastadora pandemia.

Aaron Rodgers e “Jeopardy!” era um casamento feliz. O atleta demonstrava amor pelo jogo, declarou seu carinho pelo falecido apresentador Alex Trebek e desfilou tranquilidade ao apresentar o programa por duas semanas. Entretanto, o relacionamento jamais se recuperará. Um programa pautado em fatos, com uma comunidade tão apaixonada por informações corretas, não poderá, de forma alguma, se reconciliar com o camisa 12.

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