Leitura crítica: O que há por trás das reportagens sobre CTE e concussões?

[dropcap size=small]A[/dropcap]pesar de estar inserido na Física, uma das áreas das ciências exatas que eu mais admiro é a Estatística. É uma área que possui ramificações em diversas outras ciências (um exemplo é na própria Física, com análises estatísticas em sistemas com muitos corpos) e que também está em contato diariamente com as pessoas – basta ver comentaristas de portais se matando por pesquisas para a Presidência da República.

Do pouco que eu tive contato, uma das coisas mais impressionantes da área é como os números podem ser analisados com o viés que for preciso para provar um ponto. Na Estatística também vale a máxima: dados são dados e palavras são palavras. Utilizar pesquisas e números ao seu favor é uma arte e pode ser extremamente efetivo contra públicos que não entendam relações de causalidade e correlações entre diversos fatos – como o Spurious Correlations, de maneira irônica, consegue fazer muito bem. Afinal, o método científico está sendo respeitado, apenas a leitura dos dados possui uma visão diferente por assim dizer.

Por isso que é preciso ter muito cuidado com porcentagens, intenções e opiniões de massas, principalmente em assuntos polêmicos. E é nesta parte que a imprensa entra. Em uma era informatizada, em que meu texto é acessado intensamente por três dias e depois cai no limbo da Internet, e com necessidade de caçar cliques a todo instante, o sensacionalismo entra cada vez mais em cena. Não tem problema abusar dessa ferramenta quando a notícia é que o Caetano Veloso atravessou a rua no Leblon, mas as coisas ficam muito mais sérias em assuntos delicados. E quando junta falta de informação e pressão popular, os resultados, normalmente, são ruins – como foi com o barulho desnecessário feito em cima da fosfoetanolamina, em que não se respeitou todo o processo natural da pesquisa para a utilização do remédio.

Esta linha entre o aceitável e o ridículo por parte da imprensa (nacional e internacional) parece cada vez mais ser ignorada, e o assunto mais polêmico da NFL não poderia ter ficado de fora. A ESPN norte-americana trouxe a seguinte manchete (via o seu aplicativo) em uma de suas matérias da semana (todas traduções livres):

Relatório mostra CTE achado em quase 90% dos jogadores de futebol americano estudados

Claro que esta manchete chama atenção até mesmo de quem nem tem o aplicativo. Acessando o site o título fica um pouco menos sensacionalista (mais ainda assim não traduz o que o estudo alcançou):

CTE achado em quase 90% dos cérebros doados por jogadores de futebol americano (tecnicamente é a família que doa, mas vamos relevar isso)

É o tipo de título sensacionalista que apaga os méritos de tal pesquisa científica. Foi assim quando chamavam o bóson de Higgs de “partícula de Deus “ (apesar de eu saber a origem, não deixa de ser deplorável chamar atenção para algo tão importante utilizando essa visão) ou, agora, inventaram de chamar os férmions de Majorana de “partícula anjo”; o processo criativo dessas pessoas é inacreditável, muito superior aos caras da Terra Plana. Voltando ao caso da encefalopatia crônica traumática (CTE), a falta de seriedade acaba colocando gasolina na fogueira de um assunto que ainda precisa ser melhor explorado. Não é que queremos blindar o esporte que tanto gostamos, apenas queremos seriedade em um assunto tão difícil de ser tratado. Historicamente o Pro Football se posicionou a favor do aumento das pesquisas científicas no assunto e também contra a inércia da liga (que as vezes parece a indústria do tabaco pesquisando sobre os problemas do cigarro), porém nunca deixou de apontar incongruências e romantismos desnecessários na discussão.

O estudo foi realizado por uma equipe médica em cérebros doados de atletas que atuaram seja no ensino médio, na universidade ou na própria NFL. Não houve nenhuma preocupação com a análise estatística dos números. Primeiro, todos os cérebros doados pertenceram a ex-jogadores de diferentes eras do esporte (e diferentes níveis de atuação) e que passaram por traumas totalmente distintos. Segundo que estes mesmos ex-atletas sofreram com problemas neurológicos cronológicos durante toda a vida, logo era mais do que esperado que problemas como CTE fossem detectados – em uma amostra tão pequena, diga-se de passagem. Por fim, não houve nenhuma preocupação em estabelecer causa e consequência entre os problemas neurológicos com abusos de substâncias ilícitas, remédios para dores e tantas outras drogas que muitos destes atletas utilizaram.

Note que todos esses problemas em nada afetam o estudo realizado: novamente eles estavam apenas interessados em detectar a presença do CTE em cérebros doados. Este tipo de pesquisa é importante para o avanço na detecção da doença, visto que hoje em dia é necessário retirar uma parte do tecido do cérebro para fazer tal exame – o que vai exigir, necessariamente, que o paciente tenha falecido (ou que os pesquisadores sejam entusiastas da unidade 731). Antes de podermos discutir o quanto o esporte afeta hoje em dia a saúde neurológica dos jogadores no longo prazo ou quais posições estão mais suscetíveis a esses problemas, é preciso detectar tal doença em indivíduos vivos e poder se preocupar com estudos envolvendo controle, amostras maiores, períodos distintos e tantos outros detalhes tão importantes.

Ainda mais importante, esta pesquisa expõe ainda mais o quanto a liga foi negligente durante tanto tempo com a saúde de seus atletas – por causa de dinheiro, obviamente – e como ainda é preciso evoluir a mentalidade (tanto dos donos quanto dos jogadores) a fim de evitar cada vez mais tragédias – e garantir que o esporte continue sendo praticado sem atitudes drásticas de pessoas com pouco conhecimento da causa (certo, políticos?). Além da tentativa de achar padrões para detectar o problema antes do paciente falecer, esta pesquisa abre espaço para correlacionar os dados com o abuso de substâncias nocivas a saúde, remédios para dor e também anabolizantes e, por fim, quais medidas devem ser tomadas em quais posições. É preciso divulgar e expor o trabalho sério deste grupo de pesquisadores, pois só assim podemos fazer com que o esporte que tanto gostamos não fique em uma incerteza incômoda do quanto prejudica as pessoas.

Note que a crítica deste texto é ao tratamento dado pela imprensa norte-americana, e não pelo teor da pesquisa. Concussão é um problema muito sério para ser tratado com chamadas caça cliques que não informam corretamente e jogam os setores responsáveis por tomar decisões contra o avanço científico – e contra o futebol americano em si também. A esperança é que esta pesquisa tenha mostrado o quão necessário é o investimento em ciência básica e como o avanço do esporte vai depender diretamente das agências de fomento. O maior problema hoje do futebol americano são as concussões e só atuando com seriedade e investimentos em pesquisa será possível entender o que fazer para que os atletas não percam a sua vida com problemas neurológicos.

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