Quando Donald Trump destruiu a USFL, a última liga rival da NFL

Hoje ele é um bilionário falastrão e candidato à presidência dos Estados Unidos pelo Partido Republicano. Há trinta anos, ele era dono de um time de futebol americano. Com 37 anos, Donald Trump começava a despontar nos anos 80 como um empreendedor. Como um self-made man. Com uma esposa linda. Magnata dos imóveis que acabara de construir uma torre em Nova York com seu nome.

Como um furacão, Donald Trump apareceu no cenário do futebol americano. A história provou que há vários homens bem sucedidos financeiramente e, depois disso, levantam o esporte. Um exemplo é Jerry Jones – ou mesmo Lamar Hunt, que com o dinheiro do petróleo levantou o Dallas Texans/Kansas City Chiefs e a liga-rival da NFL que deu certo, a American Football League. Trump é o exemplo negativo.

Aparte de qualquer opinião política que você tenha sobre Trump e suas opiniões sobre a imigração mexicana ou a economia americana, se você gosta de Futebol Americano é bom saber que sua saudade da bola oval é por causa dele. Se não fosse pelo excêntrico bilionário, talvez pudéssemos ter uma liga profissional de março a julho. A saudade seria menor. O esporte poderia ser ainda maior. Mas como muitas coisas nos Estados Unidos, o dinheiro falou mais alto. Antes de mais nada, você tem que saber o que era a USFL – United States Football League.

Futebol Americano de março a julho, a primavera da bola oval

Pelo eixo de inclinação da Terra, quando é inverno no hemisfério norte é verão no hemisfério sul. Quando é outono aqui no Brasil, é primavera nos Estados Unidos. O grande conceito da USFL, quando fora criada, era jogar na primavera – época que não seria comum haver partidas de futebol americano, um esporte tradicionalmente de outono. Eles teriam o esporte só para eles. Nem NFL, nem College, só eles.

O conceito foi elaborado por David Dixon, que tinha essa ideia desde 1965. Após estudar extensamente as duas “oposições” que foram feitas à NFL (AFL na década de 1960, de modo bem sucedido, e a WFL na década de 1970), ele decidiu armar a liga. Claro, haveria muito interesse financeiro na parada: a ABC (uma das então três maiores redes de TV americanas) investiu 13 milhões de dólares pelos direitos de transmissão no primeiro ano (1983). Além da ABC, a recém-criada ESPN teria direito de passar alguns jogos – na época a ESPN não tinha os direitos da NFL e precisava desesperadamente preencher grade de programação na primavera.

12 cidades com time. Nove delas, já com franquias da NFL – mas isso pouco importaria na prática, dado que não seria uma concorrência direta. Dessas 12, dez seriam cidades consideradas entre os maiores mercados consumidores do país. Los Angeles, Nova York, Chicago, todas no pacote.

A liga foi bastante notória pela quantidade de talento: três vencedores do Heisman (troféu dado ao jogador universitário de temporada mais extraordinária) assinaram com a ela. Doug Flutie (quarterback de Boston College), Herschel Walker (running back de Georgia) e Mike Rozier (running back de Nebraska).

Mas não só. Jim Kelly optou pelo Houston Gamblers da USFL ao invés do Buffalo Bills da NFL após o Draft de 1983. Outros nomes bastante lembrados são Reggie White (defensive end, o qual dispensa apresentações, tendo saído de Tennessee para a USFL ao invés da NFL) e Gary Zimmerman, um dos melhores jogadores de linha ofensiva da história do esporte.

Os erros iniciais

1984 é possivelmente o ano paradigmático da nova liga. Havia até então um “acordo de cavalheiros” para que houvesse um teto salarial, ao início da liga. Bom, havia.

Vendo que precisava fazer frente à NFL e temerários dos prejuízos iniciais (como todo negócio desse porte que acabou de começar), a USFL começou a dar seguidos tiros no pé. Da mesma forma que naquela época o Brasil imprimia mais moeda para pagar as dívidas públicas – e isso acabou deixando a moeda sem valor, gerando inflação galopante – a USFL teve a infeliz ideia de expandir para 18 times em apenas seu segundo ano. A ideia era que, com mais times, haveria mais jogos na TV e consequentemente mais dinheiro pago pela ABC e pela ESPN. Óbvio que isso faria com que os times gastassem ainda mais dinheiro que não teriam.

Exemplificando; Em Chicago, a média de público nos jogos do Chicago Blitz era de 18 mil pessoas por jogo. Bastante inepta se comparada às médias dos Bears no Soldier Field ou mesmo com o Chicago Cubs e o Chicago White Sox da Major League Baseball (cujas temporadas estavam em pleno vapor). Mas para uma liga em seu primeiro ano, não era nada mal.

Leia também:

Rádio América #11 – Agora só com NFL, as decisões dos Broncos e o quebra-cabeça dos Rams

Rádio americana reporta que Dallas não deve renovar com Greg Hardy

10 previsões para a Free Agency e para o Draft 2016

Na visão dos donos de franquias da USFL, algo “precisava” ser feito, quando em realidade não era bem isso. Walter Payton, ídolo-maior dos Bears e um dos melhores running backs da história viu um contrato de 2 milhões de dólares e três anos sobre sua mesa. Cortesia do Chicago Blitz. O número parece risível hoje, mas na época seria o maior contrato do futebol americano. Payton não aceitou de imediato, disse que iria pensar. Mas mesmo antes de dar uma resposta, a própria franquia retirou a oferta. A justificativa? Eles não teriam dinheiro para pagar.

Vendo que a liga precisava de donos ricos e em mercados consumidores estratégicos após o fiasco em Chicago, a USFL pressionou que o Los Angeles Express e o New Jersey Generals (que na prática era no mercado de Nova York) fossem vendidos a donos bastante ricos. Muito mesmo. Ao invés de incentivar uma liga parelha em termos de competitividade para que no longo prazo o interesse pela liga aumentasse, a USFL incentivava a “polarização” e o “individualismo”, pensando que a credibilidade viria com estrelas – onde quer que elas estivessem. Adivinha quem comprou o New Jersey Generals?

Nosso amigo Donald. E aí a coisa descambou de vez

Donald Trump chegou e como de praxe, causa

A instabilidade acabou sendo o principal problema da USFL. Várias franquias foram realocadas num curto espaço de três anos e a proposta inicial de teto salarial por Dixon, o fundador da liga, foi completamente ignorada no final das contas. E isso começou com Donald Trump.

Mesmo tendo o melhor running back da liga em Herschel Walker, Trump resolveu abrir ainda mais a carteira. O conceito de sua mente era o de George Steinbrenner após este revigorar o New York Yankees. Trump “rouba” o quarterback Brian Sipe do Cleveland Browns e outros diversos jogadores da NFL. Gastando mais do que madame na Rua Oscar Freire, o dono do New Jersey Generals começou a forçar, indiretamente, que outros times na USFL gastassem junto (dinheiro que eles não tinham, conforme o exemplo de Chicago). Pior: até mesmo a folha salarial da NFL acabou sendo inflacionada no processo. Como um furacão, Donald colocou em xeque a saúde financeira de todo o futebol americano profissional.

Óbvio que ele não estava nem aí. Se você bem o conhece, sabe que o que importa é seus negócios darem certo. Ah, e deram. Na primeira temporada de Trump como dono dos Generals, a equipe teve 14-4 na temporada regular. Mas aí… O time foi eliminado na primeira rodada dos playoffs.

Para ele, tudo estava uma maravilha. Indiretamente, ser dono dos Generals foi o que permitiu que o bilionário hoje estivesse concorrendo à presidência. Antes de ser dono de um time de futebol americano – e de constantemente começar a aparecer na TV, Trump não era uma figura tão conhecida do grande público. Suas opiniões começaram a dominar o noticiário da liga – ao invés do que acontecia dentro de campo. Ele “peitar” a NFL fez com que o público o aplaudisse. Mal sabiam.

20NOCERAweb3-articleLarge

E depois torpedeia tudo de vez

Ao contrário do que ocorria nos negócios, Trump não entendia coisa nenhuma de futebol americano. Ele não tinha tato para a coisa e achava que comprar os jogadores mais caros, sem pensar em esquemas de jogo ou química faria sentido – da mesma forma que fizera com os imóveis. Por óbvio, o esporte não é uma ciência tão exata.

O New Jersey Generals começou a implodir depois de mais uma movimentação financeira de Trump – o contrato de 8.2 milhões de dólares para Doug Flutie (imagem acima, entregando a bola para Walker). O quarterback jogou mal e, quando isso acontece, você já sabe o que vira: o time não vai longe. Os Generals caíram mais uma vez na primeira rodada dos playoffs.

Como consequência da queda do time mais badalado e com as maiores estrelas não indo longe, o interesse pela USFL caiu ainda mais. E junto foi a audiência. A ABC (TV aberta) simplesmente largou mão da maioria dos direitos de transmissão de uma liga que ninguém queria ver. A ESPN, ainda jovem, queria negociar o contrato em novos termos, pagando menos. O prejuízo começou a aumentar.

Mais do que a questão do teto salarial, o que destruiu de vez a USFL foi bater de frente com a NFL. Ou seja: deixar de jogar na primavera.

Se Deus quisesse que o futebol americano fosse jogado na primavera, não teria criado o beisebol – Donald Trump

Bom, não preciso dizer que a ideia era mais um dos muitos tiros no pé que a liga deu. David Dixon sabia que a consolidação seria necessária antes do combate. Ele havia estudado a AFL. Sabia que a fusão entre esta e a NFL só teria legitimidade de ocorrer quando os times das duas ligas fossem parelhos. Embora a USFL tivesse alguns talentos, isso ainda estava longe de acontecer.

Não na visão de Trump, um homem que não acredita em coisas que o dinheiro não pode comprar.

Era mais do que óbvio que uma liga com menor nível técnico não teria chance de competir diretamente com a NFL jogando na mesma época do ano. Mas na cabeça de Donald, que não era um homem ligado e apaixonado pelo futebol americano como Lamar Hunt, a simples presença de concorrência forçaria a NFL a se fundir com USFL como fizera com a AFL em 1966 (embora apenas em prática em 1970). Para Donald, o dinheiro – e não a legitimidade de talento – faria isso dar certo.

O movimento inescrupuloso definitivo foi manipular os outros donos contra John Bassett, dono do Tampa Bay Bandits e principal articulador contra a ideia de mudar da primavera para o outono. Chegou à imprensa a notícia de que Bassett estava com câncer no cérebro – e que, inevitavelmente falecendo, os donos que se alinhassem com ele estariam perdidos. Praticamente falidos, muitos esses donos de franquias resolveram se alinhar com Donald após muito lobby – pensando que estariam se dando bem. Pensando que ele conduziria a liga à fusão. Pensando que as franquias da USFL seriam absorvidas para dentro da NFL e sua saúde financeira de dar inveja.

Para a temporada de 1986, a liga teria seus jogos no outono, junto da irmã mais velha. Isso, de toda forma, não seria suficiente. Tente pensar o que Donald Trump faria quando se viu num navio naufragando – navio este que ele mesmo fez naufragar – e querendo a fusão a todo custo. Se você pensou “#partiu processar todo mundo”, acertou.

Depois de convencer os outros donos a ficarem do seu lado e contra o dono do Tampa Bay Bandits, Trump conseguiu fazer com que a USFL ajuizasse ação anti-truste. O truste é algo levado bastante a sério na economia americana. Em resumo, trata-se de um acordo entre empresas que dominam o mercado e que impedem o crescimento de outras, sempre buscando maior lucro para si. No caso, essas empresas seriam as franquias da NFL – e o lucro seria o contrato de TV da liga com a ABC, NBC e CBS.

A USFL pediu 1 bilhão em danos, alegando que os contratos da NFL com as três principais redes de TV aberta do país impediam qualquer possibilidade de justa concorrência. Um bilhão era uma quantia absurda. Estava além de recompensar danos – ficou claro que o processo era um meio de enriquecimento dos donos da USFL (com o nosso querido protagonista deste artigo no meio).

Se não bastassem decisões estúpidas e não-planejadas, a USFL contratou um advogado que não sabia absolutamente nada sobre truste. E tomou na cabeça, sendo um prato-cheio para a defesa da NFL – a qual alegou, verdadeiramente, que os problemas da USFL eram fruto de suas próprias decisões e não de qualquer concorrência predatória.

Como casos civis também são julgados por um júri popular nos Estados Unidos (no Brasil eles ocorrem apenas para crimes dolosos contra a vida, ex. homicídio doloso, onde há alegadamente a intenção de matar), a decisão foi um tanto quanto controversa. A NFL “caiu para cima”. Perdeu pela decisão do júri, mas foi condenada pela corte a pagar… três dólares. Ah, com juros ficaria US$ 3,76.

Óbvio que a USFL apelou, mas aí tomou outro tapa na cara. Em segunda instância, o judiciário americano argumentou que “as cortes não podem excluir evidência de suicídio da própria vítima num caso de homicídio”. Melhor metáfora, impossível.

E aí, como você imaginava, mais nenhum snap foi dado num jogo da USFL. A liga, na prática, foi a última real ameaça ante a National Football League. Mais do que isso: era uma ideia sensacional. Hoje, ao invés de estar sentindo saudade do futebol americano, você poderia estar se preparando para o início da temporada da USFL em março. Mesmo que não houvesse fusão propriamente dita, a USFL poderia eventualmente servir como “segunda divisão” da NFL – mais ou menos como a Arena Football League serve hoje.

Praticamente 20 anos depois, Donald Trump voltara a ser famoso graças ao Reality Show “O Aprendiz”, na NBC. Na época, a ESPN americana estava fazendo 30 documentários em função do aniversário de 30 anos do canal. Um deles era sobre a USFL e entrevistaria Trump. Ao ser inquirido sobre a liga e o tornado que passou por ela (ele mesmo), Donald disse que a United States Football League era “small potatoes” – em tradução livre, “coisa insignificante”. E que no final das contas, a liga teria ido à falência bem antes se ele não tivesse comprado os Generals.

E este é o pré-candidato do Partido Republicano à presidência dos Estados Unidos. Winter is coming.

Quer uma oportunidade para assinar nosso site? Aproveita, R$ 9,90/mês no plano mensal, cancele quando quiser! Clique aqui para assinar!
“odds