Ouvindo uma discussão entre Robert Mays e Kevin Clark, protagonistas de um dos podcasts do The Ringer, uma tópico surgiu: qual o legado de Bill Belichick? Claro, sabemos das infinitas idas à final da AFC, das nove aparições do Super Bowl, das seis vitórias no maior palco do futebol americano. Só que a pergunta tem, na verdade, um segundo sentido: que inovação, que forma de executar um plano de jogo é fruto da brilhante mente do head coach do New England Patriots?
Quando falamos de grandes técnicos na história da NFL, podemos muitas vezes apontar inovações cruciais. Bill Walsh e sua west coast offense, ubíqua no futebol americano como conhecemos hoje; Joe Gibbs com sua inovativa forma de utilizar o tight end – o h-back; o Tampa 2 de Tony Dungy, a 46 defense de Buddy Ryan, trazendo Doug Plank para formar um box de oito homens, dentre tantos outros exemplos. Se paramos para pensar exatamente o que coloca Belichick nesse seleto rol, podemos demorar um pouco.
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Quando algo funciona nos esportes, a tendência é que os times, gradualmente ou de forma repentina, adotem a “fórmula” vencedora. Para usar uma expressão americana, it’s a copycat league – uma liga de cópias, em tradução livre. Presenciamos o boom de read option pós-sucesso de Robert Griffin III e Russell Wilson em 2012, era que eu e Antony Curti carinhosamente apelidamos de pistol fest. Vemos, a cada temporada, a adoção de formações mais e mais favoráveis à spread offense, antes vista como uma antítese ao ataque pro; vemos, na seara da construção de elencos, times capitalizando em cima de jovens contratos de quarterbacks e indo de forma agressiva na free agency.
Acontece que, eventualmente, algumas tendências encontram seus percalços. Estratégias que são reproduzidas à exaustão são eventualmente neutralizadas, afinal, as mentes defensivas da NFL não estão empregadas à toa. Nem todos podem vencer, e depois de alguns picos de inovação e alteração, o futebol americano encontra um novo plateau. As janelas para conquistar um Vince Lombardi, sabemos, é curta – seja pelas amarras severas de salary cap ou ordem de seleção de jogadores nos Drafts. Além das dificuldades de um mesmo esquema se sustentar sem neutralizações, a NFL é construída ao redor da paridade.
E cá estamos, há 19 anos, vendo Bill Belichick e o New England Patriots no topo da montanha de novo.
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Quando observamos o desempenho defensivo do New England Patriots na vitória por 13 a 3 sobre o Los Angeles Rams, ficamos abismados. Ora, parecia que Jared Goff nunca antes havia tocado numa bola de futebol americano; as inovações defensivas de Sean McVay caíram por terra. O que aconteceu?
Bill Belichick aconteceu. Nas duas semanas de preparo para o Super Bowl LIII, o técnico do New England Patriots desenhou um plano de jogo formidável. Utilizando um front de seis homens, com dois edge defenders prevenindo qualquer tentativa de exploração em outside zones, Belichick tirou o pão com manteiga do ataque de McVay. Ele forçou as corridas internas – ganhos limitadíssimos com C.J. Anderson. A cereja do bolo estava reservada para Jared Goff.
O camisa 16 é, sabidamente, ainda um nome em evolução. Desde o (terrível) ano de calouro, o signal caller de 24 anos só evolui a cada ano, mas está ainda a vários passos de ser um quarterback completo. Um dos seus problemas é depender de um wide receiver livre para fazer o lançamento: Goff ainda não é o tipo de passador que, pela sua precisão, faz com que seu recebedor fique livre; ele encontra quem está aberto – e o esquema ofensivo de McVay dá essas leituras todos os domingos.
Não foi isso que Goff teve no Super Bowl. Belichick, comandante de um time que é, predominantemente, pautado em marcações homem-a-homem, jogou toda a identidade defensiva pela janela. Um time que não tinha uma chamada de zone coverage sequer até o terceiro quarto da final de conferência, dominou jogando em zona. Os Patriots, que tinham o maior número de snaps homem-a-homem na temporada regular, jogaram 90% dos snaps em zona contra o Los Angeles Rams. Assim, Belichick tirou os principais conceitos ofensivos das mãos de Sean McVay e deixou Goff completamente perdido – como alguém pode se preparar para algo que nunca antes fora executado pelo adversário?
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O New England Patriots foi, por quatro períodos, o time que eles precisavam ser. “O que eu preciso fazer para vencer? X? Então é X que faremos, e o faremos com excelência.” É esse o pensamento dominante na comissão técnica do time de Boston. Toda a semana, o time se torna exatamente quem eles precisam ser.
Por 19 anos, Bill Belichick já viu de tudo ao redor da NFL. Seu próprio time, ofensivamente, absorveu diversas tendências e variáveis nas últimas duas décadas. Vimos um time pautado no jogo terrestre e uma defesa sólida; presenciamos a spread offense e os 50 touchdowns na temporada 2007; o ataque predicado na versatilidade dos tight ends e o 12 personnel; vemos, há alguns anos, os passes rápidos e pautados em timing que trazem o west coast à vida.
E quando precisaram correr com fullbacks para explorar a fraqueza dos adversários da AFC, eles assim o fizeram. Precisando anotar pontos no relógio, adaptaram as formações no último quarto do Super Bowl e vimos Sony Michel entrar na end zone. Se planejar para enfrentar o New England Patriots é, certamente, a tarefa mais ingrata na NFL; não há como saber o que eles serão.
Por isso, exatamente por isso, é difícil conseguir apontar qual a grande inovação de Bill Belichick – qual a “impressão digital”, digamos assim, do técnico que já venceu oito Super Bowls na carreira. É justamente a ausência desse fator identitário que faz com que o time esteja em constante evolução e se adapte à tarefa do próximo domingo. Parando para pensar “on to Cincinnati” nunca fez tanto sentido.
O brilho de Belichick é único, singular. Não é coincidência que muitos dos seus técnicos assistentes tenham passagens ruins como head coach. Romeo Crennel, Eric Mangini, Jim Schwartz, Nick Saban; é difícil você sair de um ambiente no qual todos estão mergulhados na cultura de Belichick, que a construiu a duras penas, e tentar implementá-lo em outro lugar. A Patriot Way é fascinante pelos resultados, mas ela foi erigida ao longo de dezenove longos anos.
O grande legado de Bill Belichick é sua adaptabilidade. É o legado da inteligência, da profunda adoração e paixão por conhecer todas as vicissitudes do futebol americano, desde o aspecto macro até os pormenores dos fundamentos. Não à toa, a execução dos atletas do New England Patriots, em todas as fases de uma partida, é excepcional. É o comprometimento com a excelência.
Não há uma impressão digital do trabalho de Bill Belichick. E é justamente por isso que Belichick é uma lenda viva que temos a sorte de prestigiar.
Comentários? Feedback? Me procure no Twitter em @MiceliFF que conversaremos sobre o legado de Bill Belichick e o sexto Super Bowl do New England Patriots!






