Crônica, Curti: ELITE.

– Liga a TV ai, Sérgio.
– Liguei, pegou a cerveja?
– Peguei.

Sérgio e Lucas são amigos há bastante tempo. Com um trabalho que lhes demanda muito e com os dois tendo outros grupos de amigos e com alguns dias da semana reservados para as namoradas, as oportunidades nas quais eles podem se encontrar é com uma TV na frente e um jogo da NFL rolando.

– Flacco vai deitar hoje.
– Para Lucas, você precisa superar isso. Flacco teve 5.7 jardas por passe no ano passado, você precisa esquecer esse cara.
– Mano, você viu os playoffs em 2012? Ele é elite demais. Só precisa voltar pra pós-temporada.
– AHAHAHAHHA você tá de sacanagem.

Enquanto isso, um Joe Flacco bem aquém daquele dos playoffs de 2012 aparenta apatia em campo e uma habilidade bem diminuta em relação àqueles anos. Talento puro nunca foi algo latente, mas o camisa 5 dos Ravens soube sempre aparecer na hora certa. Conseguia competir de igual para igual com o todo-poderoso Patriots e derrubou o Denver Broncos no primeiro ano de Peyton Manning no Colorado.

– Ah lá, olha a interceptação vindo, Lucas. Esse cara é ruim demais.
– Fica quieto, bicho. Pelo menos eu vi meu time campeão.
– O que meu time tem a ver com isso?

Sérgio tomou o comentário como ofensa. Ele sempre se viu muito mais racional ao ver esportes do que Lucas, um fã casual e mais passional. Lucas só via os jogos dos Ravens e xingava bastante nas redes sociais quando a TV não escolhia Baltimore entre as transmissões.

– Ué, você fica falando do Flacco mas o Alex Smith não é grande coisa.
– Sim, mas os Chiefs escolheram o Mahomes neste ano. O menino joga muito, vai ser bem lapidado pelo Andy R…
– Joga muito? Ele nem entrou em campo ainda.
– Mas eu vi ele em Texas Tech, ele tem um baita braç…. – Lucas interrompeu novamente.
– Cala a boca, NFL é NFL e College ninguém assiste direito. O Flacco é muito melhor do que os dois. Elite demais, já bateu Peyton, já bateu Brady…
– Cara, você lembra a defesa dos Ravens nesses jogos?
– O Flacco que passou aquele arranha-céu contra os Broncos, não vi jogador nenhum da defesa naquele lance fora os de Denver comendo poeira.
– Você nem sabe quem fez a recepção cara. Você é muito burro, não sabe ver futebol americano.
– Cara, vaza.
– Oi?
– Vaza, você tá na minha casa e me ofendendo. Por favor, vai embora.

Sérgio saiu. Embora fossem amigos, acabaram brigando por esporte e por um jogador que nem sabia de sua existência. Esporte é paixão, é amor. Esporte pode parecer ciência para outros. Quando essas duas opiniões colidem, os dois lados ficam com vontade de estar certo. E os dois ficam errados. Lucas, então, sentiu-se culpado e resolveu mandar um whats para Sérgio voltar. Mais passional que o amigo, ele também é o primeiro a pedir desculpas quando briga por um motivo tolo.

– Estou voltando, abre a porta ai que já to no elevador – Lucas abriu.
– Cara, você não precisava falar do Flacco assim. O cara é meu ídolo.
– Bicho, mas eu estou tentando abrir seus olhos. O Alvin Kamara, que é running back, teve mais jardas por carregada do que ele teve de jardas por passe! Isso é absurdo demais.
– É por isso que ninguém gosta de conversar sobre NFL com você. Você quer sempre estar certo…
– Mas eu estou certo. São números, não é possível que você não consegue ver.

Enquanto isso, Flacco deu um belo passe para touchdown contra o Cincinnati Bengals.

– Olha la, esse é o Elite, Sérgio. Isso que você não entende!
– O cara tava aberto por metros….
– É, você não entende mesmo.
– O que não entendo?
– Você não lembra? Em 2012?
– Cara, de novo essa ladainha de Elite?
– Não cara. A Marcela tinha acabado de terminar comigo depois de voltar da Inglaterra. Eu estava um caco. A única coisa que me fazia sentir vontade de sair da cama era que os playoffs estavam chegando e que os Ravens estavam embalando.
– Lembro… – respondeu Sérgio.
– Pois é. E aquele arranha-céu não foi simplesmente um passe. Foi o primeiro momento em que eu pude sorrir, esquecer que ela me abandonou do nada quando as coisas estavam bem. Eu sou eternamente grato ao Flacco por isso. Aquele mês de playoffs me deu forças pra esquecer dos outros problemas. Lembra que eu fui demitido do estágio também?
– Lembro também… Seu chefe tinha acabado de comprar uma Mercedes e deu a desculpa que não tinha dinheiro para pagar sua bolsa-estágio que era de que, 500 reais?
– Sim. E sabe o que me deu forças pra seguir os dias e as horas? Esse arranha-céu. Não importa o que você diga cara, eu não estou nem aí para os números. Enquanto ele jogar no meu time, vai ser elite.
– Ok, eu entendo. Acho que eu vejo o esporte de uma maneira fria demais.
– Pois é. Mas eu entendo que isso não tem futuro no time. Mas não vou deixar de acreditar.
– Acho que a gente pode se entender. Me desculpa, Lucão.

Ambos se acertaram e um entendeu o outro. Entenderam que extremos, como em tudo na vida, não são o caminho certo. Há partes certas nas duas visões, nos dois discursos. Esporte pode ser número – mas sem a cor da paixão do torcedor, eles não são entretenimento: são mera matemática.

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