Ao longo da temporada 2023 – e, esperamos, das próximas temporadas -, o ProFootball publicará uma série de entrevistas com jogadores, ex-jogadores e personalidades da NFL, dando início a um quadro diferente no site. O ProFootball Entrevista chega para mostrar um lado diferente das opiniões e análises que são a base do site: queremos que o leitor fique ainda mais por dentro de como as coisas acontecem.
Para inaugurar a série de entrevistas, Cairo Santos nos cedeu mais de uma hora de seu tempo durante o training camp do Chicago Bears para uma entrevista que, julgamos, ficou ótima. Passando por toda sua carreira, algumas dificuldades e perspectivas de futuro, Cairo também nos deu insights interessantes sobre a posição de kicker e como é a relação entre jogadores da posição. Você lerá abaixo a transcrição da entrevista com pequenas edições para facilitar a leitura.
Pelo tamanho da entrevista e da conversa, decidimos dividir a conversa em duas partes. Você poderá encontrar a Parte II no site na sexta-feira.
Esperamos que gostem do novo quadro do site – e, acima de tudo, deixamos nossos agradecimentos a Cairo e ao time de comunicação do Chicago Bears pela disponibilidade mesmo durante um período tão intenso antes da temporada começar. Foi uma entrevista muito agradável.
– Bulio
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ProFootball: Cairo, a gente que conhece bastante de sua carreira e acompanha desde Tulane sabe, mas o Brasil hoje tem cerca de 35 milhões de fãs de futebol americano. Para as pessoas que pegaram o bonde andando, conta um pouquinho desse início de carreira na NFL, como surgiu a bolsa para jogar em Tulane, um pouco desse período.
Cairo Santos: Para mim, foi um sonho realizado de ser um atleta profissional – eu nunca imaginei que seria através do futebol americano. Eu sai do Brasil aos 15 anos, eu jogava futebol na escolinha do Fluminense em Brasília, e decidi ir para os Estados Unidos para continuar jogando futebol, que aqui chamam de soccer, e ir atrás desse sonho de ser um atleta profissional. Quando eu cheguei na High School, as amizades que fui fazendo, até pela cultura enraizada que tem aqui, me falaram ‘cara, você é brasileiro, a gente não tem um kicker no time, você sabe chutar uma bola provavelmente melhor que qualquer pessoa da escola, vem jogar com a gente’. Eu conhecia, assistia filmes americanos que mostravam o futebol americano, mas não sabia nem que tinha um kicker. Eu nem pensava nessa possibilidade porque não queria me machucar e prejudicar minha oportunidade de jogar futebol. Só que eles me explicaram ‘tem um cara que só entra, chuta e sai’.
Eu me interessei, aceitei o convite, e no primeiro dia eu já acertava um field goal de 50 jardas. O técnico abriu o olho e me chamou para ser o kicker já naquela semana, dizendo que eu tinha potencial para ser kicker de Division I. Quando ele falou que eu poderia realizar meu sonho de ser atleta profissional, ainda que em outro esporte, eu agarrei essa oportunidade. Não larguei do futebol até meu último ano no High School, só que na faculdade, os dois esportes são praticados na mesma temporada, então tinha que escolher um. Eu também ganhei bolsas de Division I para jogar futebol, e a maior escola que eu recebi bolsa para jogar foi Tulane. Coloquei o valor da bolsa de estudos na balança, a reputação das escolhas, e a Tulane foi a melhor escolha. O futebol ainda é minha paixão número 1 de assistir, jogar FIFA, mas apostar na educação, eu fui com Tulane.
PF: Você mencionou a escolinha do Fluminense em Brasília. Você torce para o time?
Cairo: Eu torço para o Flamengo [risos]. Eu jogava na escolinha do Zico, em Brasília, e todos meus amigos na época saíram e foram para a escolinha do Fluminense, já que os técnicos também mudaram. Então segui as amizades e joguei por lá, mas sou flamenguista!
PF: Nesse início de carreira em Tulane, a gente sabe que sua ascensão foi bastante rápida, especialmente pelo ano fantástico de 2012 [Nota do Editor: Cairo venceu o Lou Groza Award, dado ao melhor kicker da NCAA]. Na época, muita gente acompanhava o Maikon Bonani, e eu lembro que você ganhou muito reconhecimento. Foi ali que você começou a ver a NFL como uma possibilidade?
Cairo: Foi bem em 2012, meu terceiro ano na Tulane. Eu fui All Conference-USA, então já me deu confiança de ‘olha, talvez eu consiga ser visto pela NFL se eu fizer um bom trabalho’, mas no segundo ano eu tive uma lesão na virilha que me prejudicou bastante. Eu fui chamado também para chutar punts, e a técnica/o swing da sua perna são totalmente diferentes, acabou exigindo bem mais de mim e eu tive um ano bem ruim. Eu não desacreditei totalmente ali, só que achava que ainda faltava algo.
O meu terceiro ano foi quando eu tive essa temporada espetacular: acertei 21 de 21 chutes, quebrei recorde de chute mais longo de Tulane e ganhei o Lou Groza Award. Ali eu senti que, apesar de eu ter um tamanho menor que o regular para um kicker da NFL, jogar numa escola menos visionada, que não é Alabama, Florida, LSU, não joga na SEC, eu sabia que teria dificuldades, mas 2012 me ajudou a acreditar nessa possibilidade. Meu último ano foi um ano muito difícil, eu perdi meu pai num acidente aéreo, ir para o Brasil e voltar para terminar a temporada… eu não sentia a oportunidade até ser convidado para o NFL Combine; lá eu fui muito bem, também fui muito bem no Pro Day, e aí o Kansas City Chiefs me chamou para assinar com – ainda haviam vários testes que eu precisava passar antes de ‘competir’, e eu tive o privilégio de competir com o Ryan Succop, que era um veterano na liga, acabou jogando até mais uns anos… foi realmente esse ano de 2012.

PF: E durante 2013/2014, a expectativa aqui no Brasil em relação aos dois era muito grande. O Bonani assina com o Tennessee Titans, não consegue desbancar o Rob Bironas (que morre num acidente de carro em 2014), mas a sua disputa com o Succop era um caso diferente. Ele era consolidado na liga naquele momento, mas você vinha de bons desempenhos, tinha um contrato de calouro e ganha a disputa. Conta um pouquinho pra gente dessa parte de dentro da disputa que nós não vemos por aqui, e como você se sentiu no momento em que descobriu que ganhou a disputa.
Cairo: Assim… eu sentia que, no começo, eu chutava separado de quando o Succop chutava com a equipe, meio que ‘testando’. Eu comecei a ter um bom desempenho, e aí começaram a me colocar para dividir repetições com ele. No período de field goal, que dura uns 5 minutos e a gente consegue chutar uns 10 field goals, ele chutava 5 e eu chutava 5. Ali eu comecei a perceber que ‘ok, essa é uma disputa, estamos dividindo’. Nós tivemos uma amizade muito boa, ele me mostrou como que um jogador profissional treina, como trata competição, ele é um cara que eu tenho contato ainda e admiro muito. Eu tive uma competição no training camp esse ano [Nota do Editor: Cairo venceu Andre Szmyt, de Syracuse], várias ao longo da minha carreira, eu tenho muito respeito pelo que ele me ensinou e trato assim por conta dele.
Mas a gente competiu, e eu lembro que foi um número perto de 350 field goals que competimos até os dias de cortes finais. Eu acertei cerca de 93%, ele acertou cerca de 91%, a diferença foi muito pequena. E como você mencionou, eu era mais barato que ele, talvez o custo-benefício para os Chiefs nos próximos anos fosse melhor. A competição foi firme demais: jogamos o último jogo na quinta-feira e os cortes finais eram no sábado. Acho que 10 minutos antes da deadline, foi o Succop que me contou que tinha sido dispensado. O time nem tinha me ligado ainda. Succop disse que gostou demais de nossa disputa e que eu merecia, que ele estava feliz por mim. Logo depois o time me ligou me dando parabéns, e ali eu liguei para minha mãe, minha irmã, chorei bastante porque ali foi a realização do sonho, né? Virei um jogador profissional e vou jogar na NFL.
PF: É bem legal você falar isso do Succop, porque como você mencionou, ele teve uma carreira bem longa, passou por Buccaneers e Titans ainda, e é muito legal saber desse tratamento que ele teve com você. E você chega em Kansas City, nos primeiros jogos você erra alguns chutes, talvez pelo nervosismo de calouro, mas dali até 2016 o que chama a atenção é a consistência que você apresentou, principalmente nos chutes de curta e média distância, se torna o primeiro brasileiro a participar dos playoffs em 2015… foram três anos muito bons até a lesão que você sofreu. O que você mais lembra desse período com os Chiefs?
Cairo: Nesse meu primeiro ano eu aprendi demais sobre o profissionalismo da NFL. Eu sentia muito nervosismo: na Tulane, no máximo tinham 20 mil pessoas num jogo, e na pré-temporada da NFL, os estádios não chegam a encher, chega a uns 70% no máximo, e a galera está distraída, não está vibrando tanto. Num jogo de temporada regular, que inclusive foi contra os Titans e contra o Succop, eu acertei meu primeiro chute, alguns XPs e errei meu segundo field goal. Eu sentia muito nervosismo, não chutei muito bem apesar de ter acertado a maioria dos chutes; no segundo jogo, contra os Broncos em Denver, tinha Peyton Manning, Demaryius Thomas, DeMarcus Ware, eram caras que eu admirava muito, especialmente o Manning, porque eu assistia bastante os Colts por conta do Vinatieri. Eu fiquei em choque, e foi a mesma coisa: acertei um field goal de 45, acertei um extra point, mas errei um curto de 38.
Ali, meu técnico, que me ensinou muito a como trabalhar e ter uma mente forte.
PF (interrompendo): Era o Dave Toub, né?
Cairo: Isso, o Dave Toub. Ele ainda está lá, tem uma reputação muito boa entre os técnicos da liga, me ensinou bem a ser ‘sangue no olho’. A gente perdeu aquele jogo, e ele me falou na reunião na frente da equipe toda “Esse próximo jogo vai ser sua última chance. A NFL é assim, todo mundo erra, saiba superar e saiba se controlar”. A gente jogou contra o Miami Dolphins, eu não tive nenhum field goal porém acertei todos meus extra points. A partir dali, eu comecei a respirar melhor, me acalmar mais, ficar mais confiante… vários kickers também me ajudaram. Conversei com o Robbie Gould, com o Stephen Gostkowski que era do New England Patriots, no meu quarto ou quinto jogo a gente enfrentou os Patriots no Monday Night Football, os Chiefs amassaram eles e acordou os Patriots, porque ganharam o Super Bowl aquele ano.
Aquilo foi me dando confiança, ouvir afirmações de meus colegas que eu competia nos jogos e que acreditavam que eu fiz um trabalho muito bom na pré-temporada. “Você parece que não está chutando com a mesma confiança”. Você tem de treinar e jogar com essa mesma vontade. Eu acredito que a NFL é muito difícil de entrar e ainda mais difícil de ficar. Você precisa sempre melhorar, competições vão entrar no seu caminho, você vai ficando mais caro, os times querem economizar com você… esse foi um aprendizado que demorou um pouco mais para mim: de performance eu tive um desempenho muito bom depois, porém a confiança chegou mais devagar. O aprendizado dessa época me ajudou a tornar o kicker que eu precisava ser. Você tem de absorver – ‘como eu posso melhorar e ser a melhor versão de mim?’. E acho que, agora, no meu 10º ano, estou na minha melhor fase.

PF: Nessa fase em Kansas City eu lembro de uma ocasião muito especial. Aquele Sunday Night Football contra os Broncos em 2016, do famoso chute na trave que entra, eu não vi o jogo por conta do horário mas sempre lia o MMQB, do Peter King, na segunda-feira de manhã. Eu lembro de você na capa falando que, vindo do Brasil, o chute batendo na trave era mais bonito. Eu lembro de achar aquilo super legal! Era um jogador brasileiro com reconhecimento na liga e as pessoas notavam. E é no mesmo momento que o esporte cresce bastante no Brasil. Só que em 2017, você sofre a lesão e acaba perdendo o emprego pro Harrison Butker. No momento da dispensa dos Chiefs, como você fez para recuperar a confiança pós-lesão?
Cairo: Dentro desses aprendizados da época de Chiefs, o maior deles é que eu chutava muito. Quando você é jovem, ok, a perna voa. Você consegue chutar o treino inteiro. Só que o desgaste foi grande, e eu comecei a lesionar nos treinos. Eu vinha fazendo um training camp maravilhoso com os Chiefs no meu quarto ano, e num dia de chuva, a bola fica mais pesada, o couro absorve a água e ela pesa 3x mais. Isso acaba exigindo muito do músculo da virilha, e ali eu machuquei. Depois, recuperei o tanto que achei que era suficiente, porém apesar de não sentir mais dor quando começou a temporada regular, o músculo não estava fortalecido o suficiente. Só que a pressão na NFL é enorme, né? Todo time só leva um kicker. Se você não está saudável, jogando, eles terão de trazer outro cara, e se esse cara tiver um bom desempenho, os times não gostam de mudar. Como kicker, você tenta proteger ao máximo da sua posição: “vou chutar com dor, senão vou perder minha vaga”, mesmo sabendo que o músculo não estava forte o suficiente.
E aí eu acabei me lesionando no meu terceiro jogo. Ali eu fui cortado, e acabou minha carreira nos Chiefs. Eu fui fazer minha recuperação na Florida, e vinha recebendo ligações de outros times sem parar – Buccaneers e Bears eram os que mais me ligavam. Só que eu não estava pronto, então sempre dizia que ia esperar, no entanto, uma hora eu comecei a sentir que se eu esperasse demais, os times iam esquecer de mim. Eu tentei voltar com os Bears, e acabei me lesionando novamente depois de dois jogos. Ali eu fui grato pelo time de médicos e fisioterapeutas que me ajudaram a realmente decidir “para de chutar, vamos fazer uma cirurgia”, que também estendeu para uma pubalgia pelo decorrer das lesões. Então eu decidi fazer a cirurgia.
A segunda parte da entrevista estará disponível no site no dia 08 de setembro, às 13h.
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