“Não, isto é um absurdo. Não há dados que de algum jeito crie este pensamento. Não há nenhum jeito que você possa fazer um comentário que existe uma associação e algum tipo de afirmação.”
– A resposta de Jerry Jones quando perguntado se havia alguma ligação entre CTE e futebol americano.
A National Football League é um exemplo para todo o mundo dos esportes. Os donos, de maneira inteligente, chegaram a fórmula do sucesso: equilíbrio entre as equipes, calendário curto para criar saudade, pouca polêmica e muito marketing. Um teto salarial rigoroso e o sistema de Draft fizeram com que se criasse uma liga extremamente equilibrada – e isso é bom para todos. Garantir uma liga equilibrada faz com que o interesse do público aumente muito e crie-se novos mercados em regiões sem times e países como o Brasil. Sem criar um disparate de qualidade entre os times garante-se mais torcedores para todos, mais emoção nas partidas e, principalmente, mais dinheiro. Como o comissário da NFL, Bert Bell, disse nos anos 1950, “a liga é tão forte quanto seu time mais fraco”.
O futebol americano é um grande negócio, isso é óbvio, e os donos visam valorizar as suas propriedades. Essa combinação de público engajado, esporte inteligente e equilíbrio fez com que a renda da liga aumentasse incrivelmente. A NFL, por exemplo, faturou 1,2 bilhão de dólares apenas em patrocínio na última temporada – um aumento de 26,5% com relação à 2011. E aqui entra o último ponto: marketing. A liga sabe que precisa ceder um pouco de dinheiro para se colocar em destaque e ganhar muito mais depois. O teto salarial rígido faz com que as equipes não possam ter todos os jogadores, porém compensa a quantidade de dinheiro que entra devido ao equilíbrio. Ações sociais colocam a liga em destaque, pois mostra que eles se importam com a comunidade ao seu redor – uma boa imagem atrai mais investimento. Independente de sua posição político-social (que não deve entrar em discussão aqui), o fato é que o esporte é um negócio e o lucro guia as decisões tomadas.
Com lucro sendo o norte, começa-se a tornar inconveniente tomar decisões que vão prejudicar os negócios. Por causa disso, a NFL sempre tenta varrer para debaixo do tapete os dois problemas mais importantes que a incomodam: a relação jogadores-drogas e jogadores-concussões. Não se engane: a liga sabe muito bem que precisa enfrentar estes problemas, porém é muito complicado abordá-los sem arranhar a sua imagem.
ACOMPANHE AQUI A NOSSA COBERTURA DO DRAFT DE 2016.
Antes de qualquer coisa, é muito importante o leitor saber o que é uma concussão e os efeitos à longo prazo em um jogador. Sim, é tempo de Draft, mas o assunto voltou ao olho do furacão depois da morte de Kevin Turner (um grande jogador) associada com mais aposentadorias e com a reportagem do NY Times dizendo que pesquisadores contratados pela liga “cozinhavam” dados de concussão, muito possivelmente querendo proteger os interesses de seus patrões – uma atitude totalmente antiética e extremamente grave. Estes acontecimentos trouxeram à tona este problema tão incômodo: quando Roger Goodell e companhia vão dar a atenção e o respeito devidos às concussões?
Só que primeiro, é preciso entender todos os termos. Não dá para discutir o assunto sem saber a real gravidade de tal. Sabendo o que é dá para ter uma noção do sofrimento de ex-atletas e o porquê de ele ser tão discutido – e tão evitado pela NFL ao longo de sua história. Hoje em dia a liga tem algumas atitudes sobre o problema, mas ainda é muito pouco – é preciso garantir o futuro do futebol americano.
Concussão, CTE e ALS: o que são e quais seus efeitos.
- Concussões
Concussão é definida como a síndrome clínica oriunda de um trauma em geral na região da cabeça, com ausência de lesões cerebrais agudas (hemorragias, edemas, fraturas). Pode ocorrer de traumas cranianos diretos ou de traumas em outra região do corpo que levem a um movimento rápido da cabeça (desaceleração).
Os sintomas principais de uma concussão são: dor de cabeça, náuseas, vômitos, vertigem, amnésia, dificuldade de falar, lentidão nas respostas. Muitas vezes estes sintomas não surgem imediatamente após o trauma, mas algumas horas ou até dias depois. O tratamento consiste em repouso até a resolução dos sintomas.
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As concussões são mais comuns em pessoas que se submetem a atividades de contato, tornando-se então muito relevante quando falamos de futebol americano – mas também acontecem em outros esportes de contato, como o boxe, o MMA, o hockey e mesmo no futebol, dado que houve dois casos na Copa do Mundo FIFA 2014 – os quais foram negligenciados, vale ressaltar.
Atualmente há na NFL um protocolo rígido de controle de colisões que podem induzir concussões. Os jogadores são monitorados por observadores independentes e, muitas vezes, impedidos de retornar à partida. Isto adquire um papel importante quando lembramos que um novo trauma em uma pessoa ainda não totalmente recuperada de uma concussão pode levar a um novo (e muitas vezes mais grave) episódio.
- Encefalopatia traumática crônica
Cada vez mais tem sido dada importância à doença conhecida como encefalopatia traumática crônica (na sigla em inglês, CTE), relacionada a traumas repetidos na região craniana. Este quadro se caracteriza pela instalação progressiva de sintomas neuropsiquiátricos, como alterações do comportamento, perda de memória, alterações da fala, incapacidade de executar tarefas simples, levando finalmente à demência. A associação desta síndrome com os traumas cranianos pode ser reforçada pelo primeiro nome que ela recebeu: demência pugilística, relacionada obviamente a lutadores de boxe. Cabe ressaltar que esses sintomas podem aparecer muitos anos após os traumas sofridos.
Uma das dificuldades no estabelecimento deste diagnóstico é que, para que este seja definido, são necessários dados encontrados apenas em necrópsias. Desta forma só após a morte do paciente é possível finalizar o diagnóstico. Este fato certamente contribuiu para uma demora na percepção do risco de CTE em jogadores de futebol americano.
Ainda assim, recentemente, estudos têm estabelecido a relação entre a prática do esporte e o desenvolvimento da doença. Uma grande polêmica envolvendo a NFL e o tema das lesões cerebrais envolve a suspeita de que a liga tenha escondido informações sobre o risco aumentado de CTE em seus jogadores. Novas informações e disputas judiciais prometem alongar esta discussão por ainda muito tempo.
- Esclerose Lateral Amiotrófica
Vários ex-jogadores da NFL sofreram e/ou ainda sofrem desta grave doença degenerativa. A esclerose lateral amiotrófica (ALS, da sigla em inglês) causa perda progressiva da força muscular, levando à paralisia completa, sem, entretanto, alterar a consciência do portador. Recentemente o ex-fullback Kevin Turner, que sofria constantemente com concussões (sério, leia as histórias dele sobre as concussões que sofria), faleceu após conviver com a doença por vários anos. Ao contrário do que ocorre com a CTE, ainda não há evidências científicas que liguem a prática do futebol americano ao desenvolvimento de ALS. Ainda assim, dados preliminares sugerem que a incidência da esclerose lateral amiotrófica é maior em ex-jogadores da NFL em comparação com a população em geral. Estudos futuros possivelmente poderão esclarecer o grau dessa relação, que, caso estabelecida, pode colocar a liga sob ainda mais pressão no fundamental tema da saúde de seus jogadores.
A crítica deve ser feita de maneira construtiva; só assim pode-se tornar o esporte mais seguro.
Não sejamos hipócritas: amamos o futebol americano. Para muitos leitores, este é o principal esporte da vida e que nos prende todo domingo – ou mesmo todo o ano. Não podemos cair no erro de achar que tudo está errado, pois não está. E também não podemos cair no erro de fecharmos os olhos, visto que amamos o esporte e queremos que o mesmo cresça. Criticá-lo, a fim de evoluir, não é errado e demonstra o quanto nos importamos. A atitude defensiva é normal, mas ela precisa ser combatida para que as concussões não caiam no esquecimento.
No final do ano passado, o filme Concussion (Um Homem Entre Gigantes em português) escancarou como a liga sempre tentou abafar a conexão entre CTE e concussões. No início deste século, a NFL financiou um grupo de pesquisadores para verificar quais seriam os impactos das concussões. Claramente existia o conflito de interesses na questão e mostrava que qualquer resultado deveria ser colocado em dúvida – de modo semelhante pelo qual indústrias de tabaco financiavam pesquisas a respeito do uso da droga. A pesquisa, que, supostamente, reuniria todos os casos de concussão entre 1996 e 2001 acabou rendendo 13 trabalhos científicos e teve como conclusão que não havia a relação entre concussões e danos mentais a longo prazo. Um baita de um engano.
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O filme conta como a liga ficou assustada com o diagnóstico, em 2008, do Dr. Omalu que identificou CTE em um cérebro de um ex-jogador falecido – assista o filme, vale muito a pena. A partir daí, os jogadores começaram a se organizar e cobrar da NFL alguma atitude sobre os danos mentais causados em ex-atletas. Alguns organizados, com Kevin Turner como líder, conseguiram ganhar na justiça uma ação de 765 milhões de dólares em 2013 – que contava com mais alguns direitos durante a vida deles. Uma vitória… mas para quem? Oras, a liga fatura, só em patrocínio, 1,2 bilhão de dólares. Somando contratos televisivos, venda de produtos e tudo mais, a receita chega perto de 10 bilhões de dólares anuais. As cifras são muito baixas, visto que foram estes jogadores que construíram a reputação da NFL até aqui. Em vez de negar, Roger Goodell tomou uma outra postura: investir pouco e utilizar isso como marketing, pois a imagem da NFL não poderia ficar mais suja.
Falta realmente levar MAIS sério as concussões.
A citação do início do texto de Jerry Jones não me parece ter sido feito na maldade pelo dono do Dallas Cowboys. Jones não deu esta declaração em 2007, mas sim dia 22 de março… de 2016! Fontes ligadas à NFL já admitiram a ligação entre a doença e as concussões e pesquisas sérias já mostraram esta ponte. Jones, na realidade, parecia agir para tentar proteger o seu investimento – no maior estilo não há nada errado, mas talvez eu encontre algo errado. Só que a atitude dele revela o simples: mesmo depois de tanta perturbação, a liga não leva tão a sério as concussões – infelizmente.
A reportagem do NY Times escancara diversos problemas: falta de ética dos pesquisadores, influência da NFL sobre a pesquisa contratada e a negligência de todas as partes. Mesmo com fatos e argumentos bem sólidos, Goodell e companhia se contentaram em pedir para que o material fosse retirado do ar e que houvesse uma retratação por parte do jornal. Novamente, a imagem parece importar muito e qualquer menção de arranhá-la provoca reações negativas.
Como falamos no início, também não dá para pensar que está tudo errado. Após reconhecer a ligação entre CTE e concussões e aceitar pagar o processo movido por Turner e outros jogadores, houve um investimento considerável em pesquisa e desenvolvimento de tecnologia. Cerca de 70 milhões de dólares são investidos na pesquisa do CTE e na pesquisa para melhorar os capacetes – e outras coisas mais. Só que ainda é muito pouco e o conflito de interesses é enorme. Compare o quanto é gasto com pesquisas com o quanto é arrecadado. Isto claramente mostra que o problema concussões não é levado tão a sério assim.
Além do mais, ainda continuam a surgir denúncias de conflito de interesses e interferência nas pesquisas médicas. Reportagens recentes do ESPN.com denunciam que a NFL estaria tirando o investimento de um grupo de pesquisadores em Boston devido a eles terem feito comentários negativos sobre o esporte. Um deles, aliás, influenciou diretamente Chris Borland a tomar a decisão de se aposentar – que acarretou também na aposentadoria de outros jogadores dos 49ers. A NFL negou as acusações, porém normalmente onde há fumaça existe fogo e a história recente mostra que a liga não hesitaria em influenciar algo que possa arranhar a sua imagem. Por fim, vale ressaltar que as pesquisas de reforço do capacete não incluem a adição de sensores de pressão, o que seria muito útil para verificar a quantidade de impacto que um jogador sofre a cada jogada. Falta um esforço a mais para realmente parecer que existe interesse em proteger os atletas.
Falando nisso, aparentemente os atletas começaram a se importar mais com o assunto e algumas aposentadorias estão acontecendo de maneira precoce. Estamos no meio do olho do furacão e não dá para dizer, com toda a certeza, que este é um fenômeno histórico, porém o fato não deixa de chamar a atenção. Mesmo assim, existem algumas pessoas dentro dos vestiários que ainda são resistentes a aceitar que concussões são muito sérias e precisam de toda a atenção possível. Um destes exemplos é Bruce Arians, treinador do Arizona Cardinals, que disse recentemente, no contexto de esportes praticados por crianças e adolescentes, que “estatísticas podem provar qualquer coisa” e que “o esporte número dois em concussões é o futebol feminino e ninguém fica falando que deveriam parar de jogar futebol.” E ele está certo. Os outros esportes têm índices semelhantes de concussões – já falamos acima os exemplos da Copa de 2014. Mas não é porque os outros estão “errados” que a gente não possa arrumar a situação.
Não queremos que o esporte deixe de existir, de jeito nenhum. Amamos o futebol americano e nos dedicamos ao máximo a ele. Novamente, seria hipocrisia exigir que um jogo tão inteligente e dinâmico fosse deixado de ser praticado. Só que é preciso realmente levar a sério as concussões, coisa que a NFL ainda não aparenta estar fazendo. O lucro é importante, mas chega uma hora que é preciso esquecê-lo e investir realmente em segurança para não acabar com o esporte. Talvez a guinada para mudar a postura de Roger Goodell e seus pares seja a descoberta de um teste que permita detectar o CTE em pessoas vivas – também a relação de concussão com outras doenças mentais pode fazer com que seja dada mais importância ao assunto.
Aos poucos, a liga vem se manifestando. O filme de Will Smith, Concussion, só demonstra quando a NFL “fingiu” que nada acontecia. Desde o início da década de 2010, os esforços vem aumentando. O capacete que Peyton Manning utilizava há muito – o revolution – é fruto de pesquisa da fabricante Ridell para reduzir os traumas. Atualmente, mais da metade dos jogadores utilizam esse modelo. Ao mesmo tempo, a liga alterou algumas regras para tentar coibir as concussões.
[the_ad id=”1532″]Contatos capacete-no-capacete dão multas cada vez maiores, além de serem faltas em campo. O targeting – tackle no qual o defensor começa o contato com a “coroa” de seu capacete – idem. O kickoff, jogada na qual proporcionalmente acontecem mais concussões do que em descidas ordinárias – vem sendo “neutralizado”: primeiro a bola foi colocada para ser chutada na linha de 35 jardas – depois, neste ano, passou regra a ser testada na qual o touchback de kickoff (e desde que o chute passou para a linha de 35, há cada vez mais deles) faz com que a primeira descida posterior comece na linha de 25 jardas – estimulando, assim, que haja menos kickoffs e menos concussões sem eliminar a jogada como um todo.
O grosso, porém, ainda não aconteceu: pesquisas isentas. Que a NFL pegue uma % de seu lucro bilionário para que pesquisas sejam feitas em prol da prevenção e do diagnóstico de CTE para que o jogador não sofra com as consequências e seus sintomas. Todos ganham. O esporte fica mais seguro, os jogadores não se ferram quando se aposentam… Enfim.
Sabemos que este texto “toca” na ferida de modo doído – sobretudo porque falamos do que muitos amam. Sabemos que alguns continuarão dizendo que “é frescura” e que os jogadores sabem do que estão sujeitos. Mas nosso papel é fornecer os dois lados da moeda, fornecer informação para o fã da NFL, para que ele possa argumentar. Para que ele possa refletir.
Nosso site nasceu com o nome de The Concussion justamente porque tinha como objeto conscientizar as pessoas que não se tratavam de jogadores “tontos” deitados no chão: era uma lesão com diagnóstico clínico e que precisava ser levada a sério. Cada vez mais ela vem sendo – e é nosso papel, agora como ProFootball, escrever este texto elucidativo para o mercado consumidor que mais cresce. As concussões dificilmente vão deixar de existir – no futebol americano, no hockey ou em qualquer outro esporte. Mas somos um esporte inteligente. Continuemos a sê-lo. Sejamos pioneiros. Uma concussão a menos será sempre uma concussão a menos. Que a NFL reconheça de modo determinado o problema e que invista cada vez mais em seu combate.






