Blackboard: ascensão e queda do sistema ofensivo “run and shoot”

O futebol americano é, provavelmente, o esporte coletivo com maior influencia direta do trabalho do técnico. A característica de jogadas de curta duração, separadas por um intervalo, permite ao treinador definir a estrutura de cada momento do jogo. Desta forma, ao longo da história, os técnicos de futebol americano se tornaram grandes estrategistas, criando e desenvolvendo novos sistemas, buscando estar um passo à frente dos oponentes. A analogia com o xadrez é mais do que suficiente para explicar essa lógica.

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Frequentemente, os grandes saltos de desenvolvimento do esporte são nos níveis universitário e escolar, mais do que na NFL. Isso acontece, em parte, pela frequente diferença de talento dentro das mesmas competições nos níveis inferiores do futebol americano. Assim, treinadores precisam criar maneiras de uma equipe teoricamente menos talentosa que as adversárias se manter competitiva – o esquema, por muitas vezes, supera o talento no nível universitário. Já na NFL, com o equilíbrio entre as equipes, relacionado ao draft e ao teto salarial, este “drive” criativo muitas vezes não está tão presente.

Hoje falaremos sobre um sistema ofensivo criado e desenvolvido há mais de 50 anos, que tomou de assalto a NFL nos anos 80 e início dos anos 90: o “run and shoot“. Como na maior parte das vezes acontece, as defesas se adaptaram à pirotecnia e o sistema original caiu em desuso. Ainda assim, traços do run and shoot se fazem presentes na NFL até hoje, inclusive contribuindo para as campanhas de dois recentes vencedores do Super Bowl.

As Origens

Durante os anos 50, o futebol americano, em todos os seus níveis, era dominado por formações fechadas e pelo jogo corrido. “Três jardas e uma nuvem de poeira” era um lema extraoficial do esporte. Buscando melhores resultados com uma equipe formada por jogadores velozes, porém pequenos, o técnico de escola secundária Glenn “Tiger” Ellison, resolveu, segundo suas próprias palavras, “fazer uma revolução”.

Tiger Ellison espalhou seus recebedores por toda a largura do campo, e construiu um sistema baseado no timing do quarterback com seus recebedores e em leituras feitas pelos recebedores para definir a progressão das rotas. Este era o run and shoot. A abertura do ataque fazia com que a defesa precisasse abrir também a cobertura, não apenas facilitando o surgimento de janelas para os recebedores, como também abrindo espaços para o jogo terrestre.

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Os princípios do run and shoot chegaram ao jogo universitário em Portland State, em 1975, com o técnico Darrel “Mouse” Davis. Davis sabia, por experiência própria, a necessidade de que atletas velozes e franzinos fossem colocados em espaço aberto para produzir resultados. O técnico, que recebeu o apelido de “rato” por sua baixa estatura (1,67m), queria que atletas com tipo físico similar ao seu tivessem mais oportunidades. Mouse Davis então aperfeiçoou o sistema, intensificando as rotas baseadas em leituras dos recebedores, e acelerando o processo de dropback e passe do quarterback. Desta forma, o ataque de Portland State bateu seguidos recordes de jardas e de produção ofensiva, principalmente com os quarterbacks June Jones e Neil Lomax.

Mouse Davis levaria o sistema, diretamente ou através de seus discípulos, a todos os níveis do futebol americano, com períodos de grande sucesso.

Princípios básicos

Conforme mencionado acima, o princípio inicial do run and shoot é o mesmo de todos os sistemas de ataque “espalhados” (spread offense): ocupar toda a largura do campo, fazendo com que a defesa tenha que fazer o mesmo, abrindo janelas tanto para o jogo aéreo quanto terrestre.

Apesar desta semelhança importante, o run and shoot se diferencia dos demais subtipos de spread offense por alguns fatores. Primeiramente, na versão tradicional do sistema ofensivo, o quarterback se posiciona para receber o snap diretamente atrás do center – o chamado under center – e não no shotgun. A partir daí, trabalhando sempre com um dropback rápido, de três passos, entra em ação o elemento chave do run and shoot: o timing entre o quarterback e seus recebedores.

Frequentemente, as rotas dos recebedores têm opções, ou seja, diferentes possibilidades de progressão da rota de acordo com a cobertura. Cabe ao recebedor fazer esta leitura e optar pela direção correta. Simultaneamente, o quarterback faz a mesma leitura, em teoria já sabendo, baseado na cobertura, para qual direção o recebedor irá correr. Desta forma, a defesa está sempre um passo atrás do ataque. Ou como diz o próprio Mouse Davis, o ataque fica com o giz por último, desenhando a parte definitiva da jogada no… blackboard! Desta forma, o run and shoot carrega improváveis semelhanças com sistemas como triple option e spread option, baseados no jogo corrido, mas que também buscam dar ao ataque a “última palavra”, frequentemente colocando as defesas em desvantagem numérica.

Ainda que o foco principal do sistema ofensivo seja o jogo aéreo, equipes que utilizaram o run and shoot sempre obtiveram sucesso também no jogo terrestre. A abertura da defesa, que precisa cobrir os recebedores espalhados pelo campo, enfraquece a proteção pelo meio da linha defensiva. Assim, os running backs (frequentemente grandes, quebradores de tackles, nas equipes que adotaram o sistema) conseguiam bons ganhos correndo pelo meio.

A seguir, podemos ver alguns exemplos de jogadas utilizadas no run and shoot, sempre caracterizadas pelos princípios aqui descritos. Cada uma delas inclui os recebedores espalhados, com rotas curtas ou intermediárias e, pelo menos, uma rota de opção, em que o recebedor define o rumo a ser tomado baseado na leitura da cobertura.

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O auge

Após a explosão ofensiva de Portland State sob o comando de Mouse Davis, o run and shoot começou a ser explorado em vários cantos do país. Mas em nenhum lugar obteve tanto sucesso quanto em Houston – curiosamente, tanto no College com os Cougars como na NFL com os Oilers. Na década de 80, Mouse Davis fez parte da comissão técnica do Houston Gamblers, da finada USFL (liga alternativa de futebol americano que existiu entre 1983 e 1986). Os grandes resultados da equipe, à época liderada pelo quarterback (hoje no Hall da Fama e depois da falência da liga, dos Bills da NFL) Jim Kelly, chamaram a atenção de outras equipes da mesma cidade. Tanto a universidade de Houston quanto o Houston Oilers, da NFL, contrataram discípulos de Mouse Davis e do run and shoot para comandarem seus ataques.

Os Cougars da universidade de Houston alcançaram marcas históricas de jardas aéreas e pontos, e os quarterbacks Andre Ware e David Klinger receberam muita atenção de equipes da NFL, sendo selecionados na primeira rodada de seus respectivos drafts. Como que comprovando o caráter “facilitador” do run and shoot para os quarterbacks, Ware e Klinger se tornaram “busts” na NFL.

O mesmo certamente não pode ser dito sobre Warren Moon. O quarterback do Houston Oilers alcançou números astronômicos entre 1990 e 1993, levando a equipe seguidamente aos playoffs. Apesar de seu início relativamente tardio na NFL (Moon jogou na CFL antes de “descer” para os EUA), o quarterback obteve tanto sucesso em Houston que hoje está no Hall da Fama.

A queda

Nos Oilers, entretanto, um episódio marcante ressalta um dos motivos para a queda do run and shoot. O ataque de alto volume de passes, ao não conseguir progredir as campanhas, devolvia a bola muito rapidamente ao adversário, sobrecarregando a defesa. Não fosse por esse ataque, talvez você não teria visto a maior implosão da história da NFL em uma partida de pós-temporada. Nos playoffs de 1992, Houston abriu 38 a 3 contra Buffalo – fora de casa. A defesa dos Bills renasceu muito por conta da inépcia do ataque run n shoot em queimar cronômetro – e com isso a maior virada da história da NFL aconteceu naquela tarde de janeiro. Os Bills se recuperaram e venceram por 41 a 38. A teimosia de certos treinadores ofensivos fazia com que, mesmo com a liderança, não abdicassem do estilo de jogo, não “gastando” o tempo com o jogo terrestre. Desta forma, a equipe adversária teria mais tempo para tentar uma virada.

Quando o veterano Buddy Ryan (pai de Rex e Rob Ryan) foi contratado como coordenador defensivo dos Oilers, não escondeu sua insatisfação com o sistema ofensivo da equipe. O ponto máximo deste conflito interno foi quando Ryan deu um soco no coordenador ofensivo Kevin Gilbride, que se recusava a gastar o tempo no relógio, mantendo o jogo de passes. Cabe ressaltar que isso aconteceu em um jogo que os Oilers venceram por 24 a 0!!! (contra o New York Jets).

Ainda que este seja um exemplo extremo, é fato que, como com todas as inovações ofensivas, as defesas se adaptaram ao run and shoot, utilizando coberturas de pressão sobre os recebedores, associadas à pressão no quarterback (principalmente através de blitz por zona). Assim, a partir do meio da década de 90, o run and shoot foi lentamente caindo em desuso, até praticamente desaparecer do futebol profissional (pelo menos em sua forma original).

O Run and Shoot hoje

Apesar de ter entrado em decadência na NFL, elementos do run and shoot podem ser vistos na liga até hoje. Até dois anos atrás, Kevin Gilbride era o coordenador ofensivo do New York Giants, sob o comando do técnico Tom Coughlin. Mesmo tendo atualizado seu sistema ofensivo, Gilbride ainda se utilizou de muitos princípios do run and shoot. Lembra do helmet catch de David Tyree no Super Bowl XLII – o qual, aliás, ilustra este artigo? Nada mais foi do que uma jogada típica de run n shoot, com rotas verticais.

Com os passes rápidos de Eli Manning e a velocidade de Victor Cruz nas rotas de opção, os Giants obtiveram grandes números ofensivos e, mais importante, chegaram inclusive ao título da NFL. Durante um período, a equipe contou ainda com um running back típico do run and shoot: o grandalhão Brandon Jacobs, que aproveitava-se dos espaços criados na defesa para quebrar tentativas de tackles e gerar corridas longas. Mas com o próprio Giants, foi possível observar o outro lado do run and shoot. Com a queda no nível dos recebedores, e a consequente ruptura do timing tão fundamental com o quarterback, as taxas de passes completos de Manning caíram, enquanto o número de interceptações subiu. No fim das contas, isto contribuiu para a saída de Kevin Gilbride do comando do ataque. Não era só culpa de Eli.

Além dos Giants, uma outra equipe da NFL absorveu alguns dos preceitos do run and shoot para seu ataque. O New England Patriots precisava, assim como Mouse Davis nos primórdios do sistema, abrir espaço para recebedores pequenos e atléticos (Wes Welker e, posteriormente, Julian Edelman) no meio das defesas. Assim como Davis, os Patriots espalharam os recebedores por toda a extensão do campo, dando possibilidade de que Welker e Edelman alcançassem números marcantes de recepções, jardas e touchdowns. O mergulho dos Patriots no run and shoot se aprofundou ainda mais com a utilização das rotas de opção com o tight end Rob Gronkowski, que contribuíram para torná-lo quase “imarcável”.

É claro que os sistemas recentemente utilizados por Giants e Patriots englobam muitos outros princípios além do run and shoot. É difícil imaginar um ataque da NFL baseado apenas neste sistema hoje em dia – ou em apenas um outro sistema, como um west coast puro sem shotgun. De toda sorte, em todos os níveis do esporte, sempre vai haver lugar para a tentativa dos técnicos de abrir mais espaço nas defesas, e de ganhar a queda de braço estratégica que caracteriza o futebol americano.

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