Não é pancadaria, é estratégia: por que não faz sentido você ter preconceito com o Futebol Americano

Nota do Autor: Este texto é o prólogo do “Manual do Futebol Americano”, livro escrito com o foco de trazer do básico ao avançado sobre o esporte – daí seu contexto mais didático e básico, uma vez que está no início do livro. Como o futebol americano ainda é considerado um nicho muito específico para o mercado editorial, aliamo-nos à Editora Simonsen para produzir o livro por meio de um Kickstart. Funciona mais ou menos como uma pré-venda: você compra o livro e o recebe quando ficar pronto. Felizmente nossa meta foi atingida e a produção do livro está garantida: você pode clicar no link abaixo até segunda, 22 de fevreiro, e garantir o Manual com frete grátis ou ainda ter outras recompensas, como comprar o Manual e o “Tire os Olhos da Bola” com frete grátis e 10% de desconto.

Você é o receptor desta mensagem. Gostaria de poder te olhar nos olhos durante todo este livro, mas isso obviamente não será possível. A primeira coisa que passa na minha cabeça: como este livro chegou em suas mãos? Alguém lhe deu de presente? Você mesmo comprou? De uma forma ou de outra, é um desafio e tanto saber que este livro tem como leitor o mais variado tipo de público.

De toda sorte, este prólogo terá como objeto uma coisa e uma coisa tão somente: tirar o preconceito da cabeça das pessoas. Imaginando o conhecimento sobre o futebol americano uma grande construção, para que as vigas de concreto possam ser estabelecidas de modo sólido é necessário que haja uma fundação sólida. E isso só é possível se o terreno estiver plano. Esta é, portanto, a missão deste prólogo: deixar o terreno o mais fértil possível para que você possa absorver o conteúdo deste livro. Acabar com o “pântano” de preconceitos que existe sobre o esporte.

Está longe de ser uma missão fácil. Eu pelo menos nunca gostei de ler prólogos, sempre achei que eles fossem desnecessários, como a “entrada” num restaurante chique. Aqui, num manual, julgo que ele seja extremamente necessário. Dito tudo isso, nossa primeira missão é derrubar preconceitos que por ventura existam em relação ao esporte. Pode ser um preconceito que você estabeleceu, ou que você já ouviu numa conversa de bar. Seja como for – especialmente se você tem algum desses preconceitos e ganhou este livro de presente – o importante é que você leia tudo isso de mente aberta.

Em resumo, então, este prólogo servirá para retirar eventuais “ervas daninhas” de preconceito desnecessário quanto ao futebol americano – seja como esporte, seja como manifestação da cultura americana. Se você ler de coração e mente abertos, tenho certeza que o resto da leitura deste livro será bem mais prazeirosa.

É esporte de gringo tonto

Uma das primeiras coisas que ouvi de preconceito sobre o futebol americano foi isso. Lembro que em 2009, quando estava no cursinho pré-vestibular, resolvi ir um dia para a aula com uma camisa – aquelas enormes, que precisam dos equipamentos para ficarem no “tamanho certo”.  Foi uma sensação muito estranha, porque parecia que eu estava sem roupa alguma. Sabe aqueles sonhos que todo mundo tem, nos quais você vai pelado para a escola? Então, foi tipo isso. Vários olhares “julgadores”, como se eu estivesse querendo impor minha ideia de “futebol” àquela já estabelecida.

Um dos meus amigos – se bem que a gente não tem bem “amigo” no cursinho, o ambiente de competição é alto demais para isso – me perguntou: “Nossa, mas você gosta desse esporte de gringo tonto?”. Não duvido que hoje ele seja fã da NFL, com o crescimento exponencial que a liga teve no Brasil.

Confesso que na hora fiquei meio sem resposta. Falei o que um cara de 18 anos falaria: “é, mas é legal, você deveria tentar assistir”. Não pensei em nenhuma resposta argumentativa mais elaborada, para falar a verdade. Aqui, posso pensar em uma. Será mesmo que é esporte de gringo tonto?

Bom, se você for parar para pensar, o basquete, o vôlei e tantos outros esportes são “esportes de gringo”. Será que a caipirinha é chamada na Europa de “drink de gringo tonto” só porque vem de fora do país? Duvido muito, os europeus adoram e quando estão no Brasil bebem bastante, sou testemunha ocular disso. É um nacionalismo tonto achar que tudo que vem de fora é ruim ou “danoso” para a cultura nacional. O espírito de um povo, a partir do Século XX, raramente se opera de maneira isolada dos demais países. Nosso país esteve sob intensa influência francesa ao final do Século XIX, por exemplo – e palavras como abajur, sutiã e tantas outras fazem parte de nosso vernáculo. Isso está longe de ser algo prejudicial. Da mesma forma…. Bem, o futebol americano é tão esporte de gringo quanto o futebol da bola redonda. Ou já se esqueceram que é um esporte nascido e aperfeiçoado na Inglaterra há praticamente 200 anos e que veio para o Brasil por Charles Miller, um inglês?  O mesmo pode ser dito do basquete, um esporte nascido nos Estados Unidos pelas mãos de John Naismith em 1891 – e que hoje é praticado no mundo inteiro. Com certeza você já deu um chute de 3 pontos numa aula de Educação Física na escola.

O que é bom, seja do país que for, é para ser empregado na cultura de outros países também. Com todo respeito a quem pensa de maneira diversa, mas é um nacionalismo tolo achar que num planeta de sete bilhões de pessoas haja espaço para apenas o que é criado pela mente humana num território delimitado por fronteiras igualmente estabelecidas pela mente humana. O conhecimento e o esporte não podem ter fronteiras.

Nossa, mas esse negócio para muito!

Após o final da temporada 2015 da NFL, ampliei minha gama de esportes assistidos na televisão. Geralmente faço isso nessa época do ano, até porque não considero que o futebol americano seja o único esporte legal que exista. Com o final da temporada – que, ora, é meu trabalho também – acabo tendo mais tempo para os demais. Numa dada quarta-feira, me foquei exclusivamente no futebol que você, eu e todo mundo gosta aqui no Brasil desde criança.

De tarde, assisti Real Madrid contra Roma pelas oitavas-de-final da UEFA Champions League. Após, vi São Paulo e The Strongest pela Libertadores. Mesmo esporte, mas com características táticas bastante diferentes – em função do talento dos jogadores, do ambiente, da cultura da torcida e etc, etc. Uma coisa me chamou atenção, olhando como estudioso do esporte como um todo: não é apenas o futebol americano que tem essa noção de “conquista de território”.

Os madridistas passaram o jogo inteiro tentando infiltrar na área da Roma e praticamente não deram chutes ao gol na primeira etapa. O tento só veio no segundo tempo, quando num ataque rápido, Cristiano Ronaldo destruiu a defesa do adversário pela ponta e chutou de maneira precisa ao gol. Depois, me veio a mesma noção no jogo entre São Paulo e The Strongest. Acostumados à altitude da Bolívia como “décimo-segundo homem” e jogando fora de casa em maneira extremamente defensiva, o time boliviano vinha se defendendo bravamente durante toda a partida. Jogava “por uma bola”. Num dado momento do segundo tempo, o técnico da equipe entregou um bilhetinho para Alejandro Chumacero. O meia então se reuniu com três outros jogadores para ler o bilhete em “conjunto”.

Ora, não é exatamente isso que acontece no futebol americano antes de cada jogada? O técnico – ou o coordenador ofensivo, como veremos mais adiante – entrega um “bilhete” para um jogador do ataque (no caso, o quarterback), e este em “reunião” conta qual é a jogada para os colegas de time. A diferença é que o bilhete é entregue por audio, num ponto que fica no capacete do jogador – e esse bilhete é entregue antes de todas as jogadas (exceção feita ao ataque “sem reunião”, o qual também trataremos adiante neste livro).

Aparentemente, deu certo: o The Strongest fez um gol no meio do segundo tempo e o São Paulo ficou rendido, tentando novamente atacar mas sem uma jogada que colocasse a bola em posição de gol. Ao assistir aquele jogo e o anterior da Champions League, minha mente se iluminou de maneira que uniu todos os “futebóis”: todos eles tratam da mesma coisa, da conquista de território. A grande diferença é como essa conquista de território é operada.

Em analogia bélica, o futebol apresenta ataques que se assemelham a ataques de cavalaria: rápidos e que num dado lance pode furar o bloqueio defensivo adversário de maneira individual, com velocidade. O rugby, irmão mais velho do futebol americano – e diretamente derivado do futebol – se apresenta de maneira mais “pesada” e sólida nos avanços; lembra bastante a movimentação de infantaria e mesmo de tanques (embora, na prática, atualmente os tanques sejam considerados como cavalara). A movimentação se dá quase que de forma análoga à Primeira Guerra Mundial – não consigo deixar de ver um scrum como uma trincheira.

E o futebol americano é um ataque aéreo, extremamente orquestrado. O coordenador ofensivo é um general que “canta” no capacete do “tenente” qual será a movimentação das tropas numa dada jogada. Esse tenente (o quarterback) informa suas tropas qual será a movimentação de cada um – isso é feito por um código preestabelecido, não conhecido pelo oponente. Se a campanha não dá certo, as tropas saem em retirada – punt – e esperam que suas unidades defensivas contenham o avanço do inimigo.

Para muito? Sim. Mas isso tem um motivo para acontecer. A grande diferença está no modo que os olhos percebem isso. No futebol o meia-atacante trabalha a bola no meio do campo esperando uma movimentação dos atacantes – e em tese, isso é “nada” acontecendo da mesma forma que o huddle/reunião no futebol americano. Ou então quando o armador no basquete levanta um dos dedos, indicando qual jogada a ser utilizada – e enquanto isso ele está batendo bola na linha de três, de frente à cesta. O motivo de acontecer é a organização. E, da mesma forma que a defesa se organiza mentalmente enquanto o ataque se reúne, você pode em casa fazer o mesmo. De certa forma, a parada do futebol americano deixa o jogo ainda mais tenso e mental – e isso é muito legal.

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Notou alguma semelhança com aquela foto lá em cima?

Não tem estratégia, é só pancadaria

Quando uma peça “come” a outra no xadrez, talvez seus olhos não enxerguem essa movimentação como algo violento. Associamos a noção de violência a hematomas, barulho de ossos entrando em contato um com o outro e sangue. A “pancadaria” geralmente é associada ao futebol americano quando não se entende o que está acontecendo.

Veja, aos olhos nus e destreinados, são 11 jogadores de cada lado. Desses, 5 na linha ofensiva e 4 ou 5 (em média) defensores tentando derrubar o quarterback. Esse confronto entre as duais linhas – pela quantidade de jogadores envolvidos – tende a tomar a maior parte da tela. As rotas desenvolvidas pelos recebedores e sua correspondente marcação defensiva não costumam aparecer na tv enquanto o passe não é lançado. Naturalmente, para olhos acostumados a verem atletas de 80 a 90 quilos e todos praticamente do mesmo biotipo no futebol, é uma imagem que assusta. Associa-se a “batalha das trincheiras” a uma violência que é corroborada pelo tackle.

Você já parou para pensar que a palavra tackle é a mesma no futebol, rugby e futebol americano? E já reparou que ela é traduzida no futebol para desarme (o sliding tackle é traduzido como carrinho, vale lembrar)? O tackle do futebol americano não é tão diferente, é também um desarme. O ponto é que ele ocorre uma área “vital” do corpo humano (o tórax). Mesmo que não aconteça nada além de um hematoma ou outro, a noção de perigo enraizada em nossas mentes devido à área conter órgãos vitais nos faz pensar que o perigo é iminente e que por vezes pode-se correr risco de vida. Longe disso. Com a quantidade (e qualidade) dos equipamentos, o máximo que se sente é o contato sendo absorvido – lógico, por vezes acontece um hematoma.

Em agosto de 2015, fui a um treino de futebol americano de uma equipe do interior de São Paulo, o Paulínia Mavericks. Até então eu só tinha jogado o flag football, versão na qual o tackle é substituído pela puxada de uma de duas fitas presas à cintura. Ou seja, eu era um quarterback sem nunca ter tomado uma “pancada” na vida. Em compensação, já tinha tomado alguns carrinhos – por lado e aquele mais violento, por trás. Você pode até não acreditar: mas a sensação é a mesma. Tudo se opera em questão de segundos e você está no chão – igualmente na maioria das vezes você sequer vê de onde ou como o adversário lhe derrubou. Na realidade, acho que o contato com o chão (nos dois esportes) é pior do que o próprio contato do adversário – nos dois.

O Futebol Americano é um esporte físico, de contato – não vou mentir quanto a isso. Mas não é tão mais “violento”, em termos de efeitos nocivos aos corpos de atletas profissionais, do que alguns outros esportes de contato. A NCAA, entidade “controladora” dos esportes universitários nos Estados Unidos, divulgou há algum tempo um relatório sobre concussões (o vilão da vez no preconceito com o Futebol Americano) em seus principais esportes coletivos. Você acha que o futebol americano é o primeiro, né? Não.

Leia mais um trecho do Manual do Futebol Americano: O que é o Super Bowl e o que ele significa para a NFL e para os Estados Unidos

A luta greco-romana teve índice de 10 concussões a cada 10.000 exposições dos atletas. Foi a primeira. Em seguida, vinha o hockey sobre o gelo, com 7,91. Depois, o hockey sobre o gelo (feminino), com 7,52. Só aí apareceu o futebol americano, com 6,71 – e logo na sequência, adivinha quem aparece? O futebol feminino (mais praticado que o masculino, nos EUA), com 6,31. Todos são esportes de contato e os atletas que os praticam tem plena consciência disso. Não se faz necessária, de toda sorte, uma demonização do futebol americano como o esporte mais violento que existe. De memória, só na Copa do Mundo FIFA de 2014 lembro-me de duas concussões: a de Álvaro Pereira na fase de grupos, jogando pelo Uruguai, e a de Christoph Kramer na final, quando ele jogou 14 minutos depois de sofrer a lesão.

O objetivo não é demonizar o futebol aqui também, bem, bem longe disso, aliás. É mostrar que os esportes de contato – todos eles — estão sujeitos a lesões. Não só concussões, mas também as famigeradas no joelho. E o paralelo com o futebol é útil na medida em que não ocorre tanto preconceito com este no que tange ao assunto lesões – se é que há algum preconceito. São esportes de contato e ponto.

Mais do que isso: todos eles têm estratégia envolvida. Para deixar isso bem claro, pensei em fazer analogias e comparações com o esporte mental mais estratégico que existe, o Xadrez. Por óbvio, como eu nunca fui bom jogador, pedi para alguns seguidores do Twitter se manifestarem – todos praticantes do Xadrez e amantes futebol americano. As respostas me surpreenderam bastante e, por correlação, evidenciam e fortificam o caráter estratégico do futebol americano.

“Os peões atuam bastante como a linha ofensiva e defensiva. São a sua primeira barreira entre seus principais pontos de ataque (torres/bispos/cavalos/rainha). Um pequeno buraco, e lá vão “os atacantes adversários” se infiltrar”, disse-me Weclen de Souza. Outro seguidor pontificou a questão do território, tão inerente aos “futebóis”. “A primeira coisa que vale ressaltar é que ambos se tratam de uma disputa de território. O objetivo principal é capturar o rei (Leia-se também “Touchdown”), mas para isso, você tem que conquistar o território. Ler a estratégia adversária, imaginar as inúmeras possibilidades e fazer isso ou aquilo com a consciência que um passo em falso pode te botar em maus lençóis. Se a estratégia for feita corretamente, você avança e triunfa. Se não, cai”, completou Gustavo Bossolan.

Em seu e-mail, Weclen também tocou num ponto bastante importante: a presença da “rainha”/“quarterback” como principal peça do jogo estratégico. “É a peça e o jogo em si. Apesar de o objetivo final de jogo ser o de capturar o Rei, a Rainha é tão, ou mais importante, pois possui livre caminho para avançar, ou retroceder no tabuleiro. O primeiro grande objetivo do enxadrista, geralmente é o de tirar a Rainha do adversário do jogo, o que pode tornar o duelo 80% mais favorável à quem alcançar tal proeza. Analogamente, se um quarterback é neutralizado em campo, temos chances enormes de ver “o outro time vencer”. Curiosamente, foi exatamente isso que aconteceu no Super Bowl 50, com a defesa do Denver Broncos neutralizando Cam Newton, o quarterback do Carolina Panthers. E, por consequência, tendo a vitória.

A parte mental, portanto, é extremamente importante no futebol americano. Por isso que ele “para” tanto. Para que os times analisem as possibilidades e os movimentos do adversário, da mesma forma que para no xadrez após uma dada jogada. “Tanto na NFL quanto no xadrez, estudar as tendências do seu oponente é o começo de tudo. Há que se buscar avaliar a forma como ele joga, como ataca, como defende. Há que se delinear uma estratégia adequada para conseguir vencer, enquanto que, ao mesmo tempo, busca-se encontrar quais tendências suas o oponente poderá explorar”, contou-me LH Almeida.

Por fim, as diferentes filosofias ofensivas que existem na NFL e no College Football – as quais trataremos de modo mais extenso e didático na Parte III deste Manual – também tem suas contra-partes no xadrez. Isso, inclusive, foi uma das coisas que mais me surpreendeu. Mas, como ambos tratam de conquista de território e análise do adversário antes de se movimentar, acaba fazendo bastante sentido. “A velocidade imprimida em uma up-tempo offense pode ser comparada com jogadas mais ágeis do xadrez, com propósito de desequilibrar o rival”, me enviou Matheus Ricardo. Ainda, Weclen me concluiu com a West Coast Offense de Bill Walsh e dos 49ers na década de 1980: “À minha época, fosse traduzido para o futebol americano, eu seria considerado um time que usava e abusava da West Coast Offense. Eu adorava demais ir ganhando terreno no tabuleiro, sem grande dispersão das minhas peças”.

Ambos os esportes, aliás, são ferramentas bastante úteis para que um dado indivíduo crie e desenvolva capacidades mentais de planejamento e execução. Jeanine Bonazzi, que é fã de futebol americano, professora e ensina xadrez para seus alunos, reforçou o que penso nesse sentido. “Eu penso que as minhas crianças devem aprender a raciocinar e desse forma conseguirem ter condições razoáveis pra resolução rápida de problemas. Tendo em mente esses objetivos, o xadrez e o futebol americano são excelentes exemplos e métodos pra se chegar lá”.

Isso é modinha, logo passa

Outra coisa que ouvi, especialmente de modo recente. Confesso a você, leitor, que eu mesmo já incorri nesse pensamento. Quando conheci o futebol americano, ao início da década passada, eu era apenas uma criança que gostava de algo que praticamente ninguém gostava – ou que conhecia apenas por filmes da Sessão da Tarde, com suas traduções de quarterback para “zagueiro”. O crescimento exponencial da NFL a partir de quando Everaldo Marques e Paulo Antunes começaram a transmitir os jogos direto de São Paulo, em 2006, me intrigou bastante. Afinal de contas, o futebol sempre permaneceu como “o esporte” e vez ou outra aparecia um esporte “secundário” na cabeça das pessoas. O tênis com Guga, por exemplo. O atletismo nas Olimpíadas. Mais recentemente, o MMA e o surfe.

O grande ponto é que a popularidade do futebol americano não explodiu do nada. Não foi como se o Banco Central expedisse “moedas de popularidade” sem qualquer lastro. As sementes foram plantadas na década de 1990 com Luciano do Valle fazendo da TV Bandeirantes “o canal do esporte” – e de todos eles, inclusive da NBA, da sinuca e por óbvio da NFL. Ainda na década de 1990, a TV a Cabo começou a se fazer mais presente no Brasil. E a TV por satélite também – o crescimento da DirecTV e da SKY, que depois se fundiram, fez possível que cidades no interior tivessem acesso à programação de nicho da TV por assinatura. No caso, quando a Bandeirantes deixou de ter a programação esportiva como eixo motor, os fãs de futebol americano não ficaram órfãos – dado que a ESPN Internacional exibia o Sunday Night Football e o Monday Night Football, em tese os dois jogos mais importantes de cada rodada. O primeiro Super Bowl exibido pela ESPN no Brasil foi em janeiro de 1993, o Super Bowl XXVII entre Dallas Cowboys e Buffalo Bills.

De lá para cá, as sementes foram aos poucos brotando e criando raízes num público de nicho. Foram essas pessoas, a princípio, que começaram a popularização aqui no Brasil – como no “trabalho de formiguinha” que Everaldo sempre menciona quando fala sobre o envio de e-mails com a “apostila” de regras básicas. Ivan Zimmerman, André Adler, Marco Alfaro, Roberto Figueroa e toda a equipe de profissionais sitiados na sede da ESPN em Bristol, nos Estados Unidos, tiveram papel fundamental para as pessoas aqui no Brasil terem uma noção de que o esporte existe. Após 2006, em conjunto com a popularização da TV a Cabo e da Internet no Brasil, as pontes foram construídas para que o brasileiro pudesse chegar até o conhecimento (aliadas ao nível de entretenimento do esporte e da transmissão para o Brasil como um todo). O caminho costuma ser o mesmo: o entretenimento presente nas transmissões, a forma magnífica que a televisão americana trabalha o esporte e a noção de disputa de território fazem com que o esporte esteja longe de ser “modinha”.

Acredito conclusivamente que o futebol americano (como o futebol e o rugby) seja algo inerente a todo ser humano. Porque a “especificação” do ser humano, aparte do desenvolvimento da escrita, começa no momento que ele deixa meramente de ser um nômade para fixar território, desenvolver técnicas de agricultura e, bem, defender esse território. Seu cérebro, em termos evolutivos, não é muito diferente do cérebro desses ancestrais – é muito pouco tempo, milhares de anos, para que haja mutações significativas. É por isso também que existe uma certa timidez no flerte quando adolescente – temos as mesmas amarras emotivas daqueles ancestrais, que se “tomassem um fora” na aldeia, não teriam como procriar. Da mesma forma que a aldeia virou uma aldeia global, a disputa por território “aperta” alguns botões genéticos de forma lúdica com o futebol e seus filhos derivados, seja um deles o futebol americano. Falando em filhos, cada vez vejo mais amigos que amam futebol americano e que já estão tirando fotos de seus filhos com roupas dos Patriots, dos Packers… Da mesma forma que o amor pelo futebol passou de seu bisavô até você, o futebol americano deve testemunhar o mesmo processo.

Aliás, falando nos três esportes irmãos, não é por acaso que a Copa do Mundo FIFA é a competição de esporte coletivo mais assistida do mundo, a Copa do Mundo de Rugby seja a mais assistida nos países colonizados pelo Império Britânico (fora os EUA e a Inglaterra, que se inserem nos outros dois) e que o Super Bowl, a final da NFL, seja ano após ano o evento mais assistido dos Estados Unidos. O ser humano ama futebol, na versão que for. Basta conhecer suas regras para se apaixonar. Porque são todos esportes que fazem parte de nossa essência enquanto espécie. A única coisa que em essência diferencia os três é o modo em que o território do adversário é conquistado e defendido por aquele.

Não é “pancadaria” desorganizada como uma briga de rua e nem um negócio que “para toda hora porque sim”. Menos ainda “um esporte de gringos”, isso outros também são. Menos ainda mera “modinha”, porque a partir do momento que entendemos as regras, fica impossível não se apaixonar. 

O futebol americano veio para ficar no Brasil – e isso longe de “ameaçar” o futebol, não tenho esse delírio.O fato da ESPN ter liderado a TV a cabo (e não foi por segundos, a permanência média foi de quase duas horas) durante o Super Bowl 50 é mais um fato que comprova isso. O espaço pode ser comum, inclusive com outros esportes – americanos ou não. O esporte é o melhor entretenimento que existe: não tem spoiler, não tem roteiro e tudo acontece ao vivo. Aqui, neste Manual, vamos te mostrar que o Futebol Americano é um esporte sensacional. Bem organizado e, sobretudo, competitivo. Num domingo qualquer, a zebra pode vencer. Num ano qualquer, as 32 franquias da NFL têm chance de vencer o Super Bowl.

Mas não nos apressemos. Agora que o terreno está arado, nivelado e fértil, vamos colocar as sementes aos poucos para que o interesse que você tem pelo futebol americano se torne um amor para a vida toda. Confie em mim, é algo que não tem volta.

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