“Quarterbacks” é uma série especial de Antony Curti para o ProFootball, contando a história dos principais quarterbacks da história da NFL.
“Nem fod***. Vamos com o no-huddle e talvez você aprenda algo. Você nunca pode pedir para sair, você é nosso líder, seja como tal”. O Indianapolis Colts apostara todas suas fichas na dura decisão de escolher entre dois dos melhores prospectos em algum tempo no Draft da NFL. Peyton Manning ou Ryan Leaf. Foram com Peyton. E as dores de crescimento foram fortes no primeiro ano.
A frase acima é retirada do livro Quarterback Whisperer, de Bruce Arians. Campeão do Super Bowl LV com Tom Brady, Arians era o técnico de quarterbacks de Indianapolis no ano de calouro de Peyton. Os Colts estavam tomando uma surra. Manning, que vinha de “berço de ouro” em tudo o que disputara na vida, quis sair. Não lhe deixaram. Ele amadureceu, vingou e hoje é um dos maiores quarterbacks da história.
***
Meu fascínio por Peyton Manning vem do fato de que ele fez o que paradoxalmente parece quase impossível: ser um prospecto laureado, primeira escolha geral do Draft e… Deu certo. Chegar com tantas pompas na liga geralmente mais atrapalham do que ajudam. Ainda mais no caso de Indianapolis. Sei que hoje, para 90% do público brasileiro que acompanha a liga, é fácil ver os Colts com uma imagem vencedora. Mas a verdade é que não era assim. Em Indianapolis, o time fez um total de vários nadas. O mais longe que chegou foi uma final de Conferência em 1995 – a comparação muito válida é com o legado que o Jacksonville Jaguars tem atualmente na liga com a chegada de Trevor Lawrence.
Então, Peyton chegou. Mas as coisas não se alinharam já no primeiro ano. Como muito alardeado, Manning ainda tem o recorde de mais interceptações por um calouro: 28. Embora pouco falado, tenham sido 26 touchdowns também. Não foi uma catástrofe, afinal.
***
Tal como acontecera em Senna x Prost na Fórmula 1, a rivalidade de Manning e Tom Brady mostra-se como uma das mais interessantes por ter estilos e histórias de vida diferentes. Personalidades diferentes, também. Manning foi a primeira escolha geral, membro da família real do futebol americano e chegou na NFL conquistando tudo menos o título do college. Brady, como sabem de cor, foi uma escolha de sexta rodada e é praticamente uma fábula messiânica no futebol americano profissional.
Nos primeiros anos, a mesa virou. O filho de ouro começou a ser derrotado constantemente pelo plebeu. O maior ponto de crítica em sua carreira sempre residiu na pós-temporada. São 186 vitórias e 79 derrotas na temporada regular. Na pós-temporada, 14-13. Se formos considerar os primeiros anos, a campanha era amarga: 3-6 em pós temporda. Duas dessas derrotas vieram diretamente contra Brady.
Esse é um ponto dos mais interessantes na jornada do heroi de Peyton e justamente o que me cativa em sua história. Ao contrário de Brady, que começou como um nada na NFL e só cresceu, Peyton começou como uma grande estrela e acabou sendo vítima da própria luz. Levou um time horroroso da pior campanha aos playoffs em apenas dois anos. Entre 1999 e 2004, anos que Manning frequentou a pós-temporada, a defesa de Indianapolis foi a 21ª em pontos cedidos, a 30ª em jardas cedidas por carregada, a 26ª em conversão de terceira descida, a 25ª em jardas cedidas por passe. Poderia ficar até amanhã citando como faltavam peças e, aparte do que Peyton fizesse, não havia substância.
Isso por muito tempo foi considerado como uma enorme passação de pano para as derrotas de Peyton em pós-temporada. Até porque ele teve certa fatia de culpa nelas, como nas interceptações contra os Patriots. Mas é interessante notar como só foi dar uma defesa melhor para ele em 2006 que as coisas vingaram. Dos times na pós-temporada daquele ano, Indianapolis teve a segunda melhor defesa em pontos cedidos por jogo nos playoffs. A terceira em jardas por jogada, a primeira em jardas cedidas por jogo, enfim. Deram ajuda, ele correspondeu. O anel finalmente fez parte do cofre da Família Manning
***
O pós-Super Bowl tirou um fardo gigante das costas. Peyton não precisariam mais frequentar a mesma vaga de estacionamento de Dan Marino – com um grande “mas” marcado no chão por não ter vencido um título. Vieram anos esquisitos, com alta produção ofensiva mas frustrações em janeiro. 2007 e 2008 tiveram derrotas doídas paras os Chargers, nêmesis de Peyton em temporada regular ou playoff durante um tempo e o time que ficou com o “prêmio” de consolação no Draft de 1998. 2009 veio com um time que sabíamos que estaria no Super Bowl contra o outro time que sabíamos que estaria no Super Bowl. O que não esperávamos é que o conto de Cinderella do New Orleans Saints tornaria o conto do bicampeonato de Peyton num pesadelo na chuva de Miami.
Até que vieram as lesões. O último jogo de Peyton pelos Colts foi no dia 8 de janeiro de 2011, mal saberíamos. Um drama se estendeu durante toda aquela temporada, com a possibilidade de Peyton não jogar mais chegando a estar na mesa. Passando por cirurgias no pescoço, ele de fato não jogou em 2011. Sem ele, Indianapolis teve a pior campanha da temporada e com isso, veio o direito de escolher o melhor prospecto na posição de quarterback… Desde Peyton. Com incertezas no futuro, o time optou por seguir com o novo e abandonar “o velho”. Draftou Andrew Luck e antes disso, cortou Peyton para que o gatilho de dinheiro garantido não fosse ativado.
Em março de 2012, um frenesi de free agency aconteceu, com Manning tendo que decidir entre vários times. Na época, Tennessee (onde ele jogou no College), Miami, Arizona e Denver estavam entre eles. Manning escolheu os Broncos, muito por seu carinho por John Elway, e já naquela temporada mostrou que ainda era o mesmo. Para a tristeza do torcedor, um Joe Flacco em pele de Joe Montana acabou com o sonho do título.
2013 veio com o melhor ataque da história da liga. Já nos três primeiros jogos foram 12 touchdowns. Foram 400 jardas em três oportunidades naquela temporada e também três oportunidades nas quais o time bateu 50 pontos – melhor marca da história. No todo, 606 pontos – também recorde – e o ainda intacto recorde de touchdowns e jardas numa temporada, com 55 e 5477. Nos playoffs, decepção de novo de forma doída: um apagão no Super Bowl e uma eliminação em 2014 contra seu ex-time, os Colts.
***
O crepúsculo da carreira de Peyton é um tanto quanto melancólico se você for pessimista, porque a produção ofensiva sumiu e parecia uma sombra do quarterback de outrora. Se você for alguém que gosta de seguir as letras do Monty Python e “ver o lado positivo da vida”, 2015 é o ano em que o universo retribuiu e a característica que mais define Peyton, para mim, apareceu.
Depois de tanto sofrer com defesas pavorosas, Peyton teve em 2015 uma das melhores unidades defensivas da história da liga. Por outro lado, como a vida dificilmente nos dá almoço grátis, ele passou o ano machucado. O time chegou a contar com Brock Osweiler como quarterback titular naquela temporada. Peyton, passando a bola, não era mais o mesmo.
Orquestrando o ataque, porém, nada era maior. Manning é o quarterback mais cerebral da história do futebol americano. Em seus tempos de Indianapolis, ele comandava o treino. Ele comandava o ataque. Ninguém lia a defesa antes do snap como ele, ninguém fazia tantos ajustes como ele. “Vamos com o no-huddle e talvez você aprenda algo”. Mal sabia Arians como ele aprenderia, como ele seria o mestre de ir rápido para a linha.
Sem força no braço, restou a Peyton comandar as tropas com o cérebro. É bem verdade que o time venceu o Super Bowl graças às maravilhosas atuações defensivas da No Fly Zone, mas o Super Bowl 50 também foi conquistado pelas leituras, ajustes e presença de Manning no ataque. Não creio, honestamente, que o time teria sido campeão com Osweiler.
Peyton é o quarterback preferido de meu parceiro de podcast e site, Deivis Chiodini. Para este texto, pedi para ele formular uma frase que resuma seu legado e o que ele representa para a história do jogo. “Manning é uma revolução na posição de quarterback. Com todo respeito que seus antecessores merecem, ele mudou o jogo. Nunca alguém na função teve tanto controle sob o que acontecia em campo. Com o domínio, veio a liberdade para mudar e ajustar o que quisesse. Nem o melhor braço, muito menos o melhor atleta. Manning venceu usando a cabeça e o trabalho duro. Um trabalhador incansável, que elevou todos ao seu redor enquanto esteve campo. Gênio”
Manning aposenta-se deixando quase que literalmente tudo no campo, cada gota possível. Sai do gramado com vários recordes, alguns ainda seus. 5 vezes MVP da temporada regular, 7 vezes All-Pro e com dois aneis, Peyton Williams Manning é um dos três maiores quarterbacks da história. O Xerife chegou com altas expectativas. Cumpriu todas.
“Para mim, ele é o melhor de todos os tempos. É um amigo e alguém que sempre vou assistir e admirar, porque ele sempre quis melhorar, não se contenta com nada que não seja o melhor. Então, quando você assiste ao melhor, tenho esperança que isso me faz melhorar”
Tom Brady, em 2011, sobre Peyton Manning.


